segunda-feira, junho 09, 2008

O AMOR NOSSO DE CADA DIA - Conto

O grande mito antropológico é o do andrógino, diz Berdyaev: o homem completo, masculino e feminino, solar e telúrico, lógico e cósmico ao mesmo tempo, o ser que se fiou na saudade imemorial depois da divisão humana em dois sexos diferentes. No começo do mundo, diz Platão, os seres humanos não possuíam sexos diferenciados. Eram valentes e ambiciosos andróginos que mandavam e desmandavam nos quadrantes da terra. Mas quando atacaram Júpiter, deram-se mal: o Todo Poderoso daquele tempo rebateu a investida com uma mão e com a outra dividiu o exemplar andrógino ao meio, de cima para baixo, fazendo dois de cada um deles. Depois da vertical cirurgia cada parte nunca mais sentiu-se completa e realizada, cada uma deseja, eternamente, unir-se à outra. Desde então os seres humanos buscam o amor, experimentam todos os sentimentos sem jamais encontrar sua alma gêmea, o corpo complementar do inextinguível desejo nosso de cada dia. De minha parte concordo plenamente. Sou assim mesmo: uma espécie de cão farejador que olha, cheira e lambe a ausência de quem esteve em si mesmo procurando outro coração, como se precisasse de dois para melhormente viver. O outro, de outra cor, de outra feição e de outro cheiro e de outro gosto – e mesmo assim complacente e feliz na unificação. Desde a infância que sou assim. Lembro-me como simpatizava com a Esterlina, uma garotinha salpicada de sardas, como amava a Toninha, momentinha nos enfeites e desleixos, e me apaixonava pela Zizinha, que tanto me procurava com os olhos como fugia com as perninhas equilibradas. Depois, na juventude, quase morri de amores por tantas moçoilas da roça e do arraial, e depois na primeira maturidade o apego que nutria pelas moças da mesma estatura, de outras feições e diversificadas biografias. Sei que todas eram sempre a mesma dos sonhos, do desejo de completude – pois que sendo eu uma das linhas do novelo da VIDA, carregando a consciência da memória e da expectativa, procurava (e procuro) novas palavras para receber, entender e transmitir as fantasias e realidades do sono e dos sonhos. Na procura feri algumas pessoas e feri-me algumas vezes, inevitavelmente. Aconteceu tanta novidade nos incontáveis caminhos, só vendo outra vez para acreditar! Uma vez detive-me diante do rosto de uma moça estranhamente enclausurada na própria casa (o pai ciumento não permitia que ela nem mesmo chegasse a uma das janelas): os olhos dela doeram em mim. Descreviam uma virada de onda sob o fluxo da correnteza, sabendo ter sobre a cabeça aureolada um beija-flor hipnotizad pelo olhar venenoso de uma incrível serpente. As mulheres que inspiraram Shakespeare são as mesmas que enfeitam as casas e ruas de hoje em dia? Ele disse a respeito de uma Laurinda de seu tempo (que (in)certamente é a mesma Laurinda de meu tempo) que a palavra de amor cavalga o coração apaixonado como a plumazinha do cisne na alta onda do mar revolto, sem voltar-se para nenhum dos lados. Assim ele disse, com as palavras dele, muito melhores do que as minhas, claro. A minha Laurinda tinha os olhos verdes e amarelos – e assim numa tarde de minha crepuscular juventude, ela passou na farmácia e, sabendo que a noite prometia ser friorenta e ventosa, comprou um tablete de cacau – e depois de passá-lo nos lábios, cuidadosamente, deu-me para passar nos meus. E eu, enquanto passava, disse-lhe: “só assim, por tabela, consigo beijar teus lábios tão pertos e tão fugidios”. Ela riu, retraída e pudica, como se dissesse: “considere-se, pois, devidamente beijado, sim?” Até hoje arrependo-me de nunca ter sido, na vida, um pouco audaz. O fato é que não pedi nem ganhei, nem roubei o beijo tão querido. Sei que a conformação fisiológica prepondera na distinção sexual masculino/feminino: a mulher tem a direção erétil mais internalizada, por isso seu desejo maior é o de ser desejada e não o de desejar; já o homem possui o aparelhamento de forma mais exteriorizado em virtude da própria dotação física: assim ele não cuida de ser desejado, mas sim de desejar, ou seja, quer ser o elemento ativo e não passivo ou intermediário, condição que o leva mais ao caminho do estupro do que o da paridade. E só de pensar no estupro quase automático do modelo usual da relação, ah, só isso me inibe e me inibe. Mas, lá um belo dia desfrutei da ventura de ver os seios de Odília no alpendre da casa dela, quando ela se inclinou para mostrar-me uma folha de versos e de flores. Isso aconteceu mesmo onde e quando? No Camacho? Mas nunca fui ao Camacho em toda a minha vida! Ah, deixo a dúvida de lado, mas o que aconteceu, aconteceu indelevelmente. Vi então as duas juritis ali retendo o mesmo vôo e o mesmo canto, as duas maçãs do rosto formoso, os dois olhos miraculosos, as duas palavras do mais extremado amor instantâneo. Meu coração bateu forte e só faltou falar e cantar que o corpo dela é a planta e a alma, a flor peregrina pousada no galho de uma das primaveras da eternidade. Assim passa o tempo nas asas dos pássaros, assim passou nas minhas pernas incansáveis. “Ela passou aqui” – alguém deu-me a informaçã, na estrada de terra que vai do Curral aos Teixeiras. Passou – e devia caminhar como sempre caminhava: o traseiro levemente arrebitado, o rosto levemente pendido – e aquela maneira só dela de ficar calada como se estivesse conversando. Segui a vontade de procurá-la, rodeando as serras lisas e escarpadas, os vales encapoeirados, as encostas e pastagens, os pedregulhos e campos sáfaros, salpicados aqui e ali de arbustos de boizinho e de barbatimão. Apreciava de longe as ilhas de chuvas, a cerração líquida e delimitada, a gotejar nos pontos da paisagem em que o verde mais escurecia. Já entardecia quando cheguei ao lugar antecipado de brejos, espinheiros e cipoais, onde ainda vive um punhado de elementos de uma tribo remanescente da escravidão colonialista, que vive poupando ao longo do tempo sua herança genética, seus festejos e a mobilidade verbal de seus antepassados sacrificados. Foi ali, de longe que senti a luminosidade dela, antes mesmo de vê-la. Tampado pelas moitas de alecrins e sempre-vivas, esgueirei-me na estradinha à deriva dos brejos até alcançar a melhor cena daquele pequeno paraíso, finalmente encontrado. A simulada princesa iraniana, descendente da Raquel, serrana bíblica e camoneana, ali estava a mergulhar e emergir no amplo poço do monjolo, com toda a singeleza rara que aviva o sol da natureza, o aroma da beleza, as nuvens vermelhas nas serras azuis, ah, a alma prescinde da roupa para se encalorar! O ar passa nas árvores, não passa nas pedras: a canção voltava dela para mim? Do Itambé ao Itatiaia, a correr de uma nádega à outra; do Tabor aos Andes, a correr de um seio ao outro: uma perna na Mantiqueira, outra na Canastra, lá vou eu passando embaixo com a brisa que carrega os horizontes para bem longe. O vento que traz as notícias nas palavras diz que “a história é forjada não pela destreza da razão, mas pela astúcia do desejo”, diz também que a felicidade é a realização adiada de um desejo pré-histórico – e por isso, como diz Norman O. Brown, o dinheiro, não sendo um desejo infantil, traz pouca felicidade e muita desventura. Mas ela agora mergulha e bóia na flor da água, o sol a dourar seus pêlos pubianos, a água a molhar os outros poemas de seu corpo, e ela bem ali, a recuperar a linguagem sensual na qual, segundo Jacob Boehme, todos os espíritos falam uns com os outros, pois a linguagem sensual é a linguagem da natureza. As árvores sentam com ela na grama, pensam com ela na solução dos problemas comuns, falam com ela nas canções passarinhas. Os andróginos, segundo Platão, tornaram-se insolentes, e os deuses, ofendidos, para castigá-los, racharam-nos ao meio com o intuito de eles, assim aleijados, preocupassem na eterna procura da outra metade – e que movidos por esse desejo sem fim, renunciassem ao desafio que até então faziam de despojá-los de suas arraigadas divindades. Assim é que nasceu o AMOR, esse desejo, essa nova forma de desdobramento individual. Ah, esse amor que tanta falta nos faz!

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Fantástica essa observação estupro/paridade. Aliás, como é fantástico tudo o que você escreve! Obrigada por este ensinamento. Marilda Mendes.

9:13 PM  

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