domingo, junho 22, 2008

CONVERSA NA VENDA DO ARRAIAL II

“Para os matutos, todos os caminhos dão na venda” – Graciliano Ramos. O cenário é o do nosso velho arraial de alguns anos atrás, então tido e havido como um lugar de encrencas, mas que hoje a mansuetude dos comportamentos populares é sua tônica: só encontra briga quem muito procurar. O sol do meio-dia faz o caminhante pisar na cabeça da própria sombra, e mesmo assim os roceiros chegam das quinze bandas, pois o dia é dia santo de guarda: uns a pé, outros a cavalo, uns descalços, outros de botinas ou alpercatas, uns entram primeiramente na igreja, outros adentram diretamente na Venda do Toniquinho, onde compram as coisas, bebem a pinga e proseiam na linguagem dos lugares-comuns de suas circunstâncias. Chegar ali é fácil e participar da roda também é; o difícil é sair e na saída sentir o ardume nas orelhas, primeiro sinal de que falam cobras e lagartos em suas costas. Eles chegam, aboletam no balcão de madeira e nos sacos de mantimentos, empilhados do lado de fora do balcão, de propósito para servirem de assento e recosto. Eles enchem as capangas de cereais, sal, rapaduras, querosene e macarrão. São conhecidos por suas ocupações, participam da conversação geral de cada instante na linguagem salpicada de ditos populares, uma técnica falatória que economiza o palavrório e abrange uma roda maior de conviventes da mesma empreitada difícil e assumida do homem rural de nossos pequenos sertões. O Desocupado, quando chega, chama atenção. Desocupado (a todos): Se estão a falar da vida dos outros, podem falar da minha, que é um livro aberto, com todas as folhas em branco. Vaqueiro: Vem não, cabeça de leitão. Melhor do que falar dos outros é falar das mulheres dos outros. Desocupado: estão falando da minha? Já repararam que depois que arrumou os dentes e comprou roupa nova, ficou mais bonita? Catireiro (maledicente): Na dispensa de sua casa não falta nada, né? Desocupado (levando a ofensa na brincadeira): E na sua, falta alguma coisa? (olha os outros) e na de vocês? Na minha não falta nada. (Com a cara mais lambida) Alguém perguntou se sei o preço do quilo de toucinho? ...Não sei não... Eu bem que chamei você para terem uma mulher enfeitando a casa...(sai, hipocritamente rindo). Seleiro: Esse aí não tem um pingo de vergonha na cara. Catireiro: Mas o que ele falou é a pura verdade. A mulher dele dá bem uma meia-sola. Tem um traseiro que mal passa nessa porta: um torresmão! Seleiro: Mas não é do seu bico, já tem boi na linha. E sabem quem é? Adivinhou quem pensou ser o Caetaninho da Maleita: ô cara inserido, está sempre na moita, desferindo suas investidas, com a cabeleira englostorada e o eterno paletó de jaquetão. Vaqueiro:O Zecapião já terminou o amansamento naquela área? Seleiro: Aquele (você disse bem) vai na frente chupando as laranjas e comendo as mangas. Só deixa as cascas e os caroço para os outros. Ferreiro: Conheço esse Zecapião desde o tempo do onça. Nunca teve eira nem beira, coitado. Nasceu ali nos espinhos das Restingas. Não sei onde tirou esse dom de agradar às mulheres. Vaqueiro: É só ele passar e elas ficam rindo à toa. Ferreiro: E não passa de um sujeitinho atarracado, de conversa mole. Seleiro: Mas a cada dia está montado num animal mais raçudo e bonito, todo garboso. É tudo dos outros, dele mesmo só possui aquela eguinha báia, estropiada. Mas as mulheres só vêem a empáfia, o lenço no pescoço, o chapéu de feltro, as botas empolainadas, os dentes de ouro ou de cobre, sei lá. Lenhador: Uma vez ele engraçou com a minha patroa – e eu mandei ele chispar na poeira dos caminhos. Carreiro: De vez em quando ele dá com os burros nágua. O Juca Pifão, lá da estiva, chegou a agarrar a garganta dele e aí ele arriou a calça e pediu “pelo amor de Deus, seu Juca, não faça isso comigo, que tenho filhos para tratar. Sei que estou errado, mas peço perdão de mãos postas, se quiser!” Capinador: É um semquefazer da pior espécie, acho até que tem partes com o demo, com aquele jeito cretino de boa praça. Lenhador: Você foi em cima da pinta, como suas palavras. Ele deve ter partes com o Dito Cujo, pois monta no burro mais brabo da tropa do Titão e sai na maior maciota, o burro fica tão manso de repente, que se coçar nele, ele até deita. Vendeiro: Vocês ficam aí a falar mal dele. Empombado ele é, não descreio, mas fiquem sabendo de uma coisa: ele anda comendo outra dona, muito conhecida, além da mulher do Pacau, que é do conhecimento de Deus e de todo mundo. Vaqueiro: Quero morrer seu amigo, viu?! Mas você põe a pulga atrás de nossas orelhas, ao contar o milagre sem dar o nome do santo, ou melhor, da santa. Catireiro: Isso mesmo! Conta quem é. Quem sabe assim a gente pode ir queimar um pouco de incenso no altar dela? Lenhador: Quem ajoelha tem que rezar. Pronuncia ao menos a primeira letra do nome dela. Vendeiro: Sou lá algum trouxa? Lenhador: O que perde em dizer? Vendeiro: Perco o freguês. E sabe que quanto mais mulheres ele tem mais fregueses eu passo a ter? A cadernetinha está ali, às ordens dele. Lenhador: O marido da tal está ente nós aqui, né? Vou andar daqui pra lá e você vai dizendo quando estou frio e quando estou quente. Combinado? Vendeiro: É peta insistir. Bato na boca pelo que falei. Em boca fechada não entra mosquito e eu, desavisado, abri a minha, que torno a fechar. Roçador: Eu também antipatizo com semelhante pessoa. Ele não vale o feijão que come. Vaqueiro: Ele acha que é melhor que os outros só porque casou com a filha do Calixto. Só por isso pensa que é o tal. Em si mesmo não tem eira nem beira. Carreiro: De minha parte não ponho a mão no fogo pela fidelidade da mulher dele. Não ponho mesmo! Ela até já deu bola pra mim num pagode lá nos Vieiras, enquanto ele tocava sanfona. Depois é que fiquei sabendo que ela deu, na mesma noite, prum fazendeiro do Fundão, nos cômodos dos fundos da casa do pagode. Banquei o trouxa e perdi um quinhão, né? Vaqueiro: Mas você, heim? Tenho dito que quero morrer seu amigo. Carpinteiro (chegando): Ó vocês aí, que nunca me deram nada nem intenção tem de me dar. Vaqueiro (debochando): O que é seu está bem guardado aqui (faz um gesto). Carpinteiro (debochando): banana verde não se dá, soca naquele lugar pra madurar. Vendeiro (atendendo ao Capinador): Enquanto vem com o milho, vou com o fubá. Capinador: Quando você morrer, vão dizer caboucubão tava ali. Vendeiro (irônico): Falar o que vem à boca é fácil. Difícil é falar para certos fregueses aquela lorota de quem não deve não teme ou não treme. Capinador (entendendo a indireta): Nunca fintei ninguém nem intenção tenho de fintar. O que lhe devo, senhor Toniquinho, está dependendo do Afonsinho lá da Laje me pagar o que me deve. O trabalho de duas semanas! Vendeiro: Sendo assim podemos tirar os cavalinhos da chuva. Aquele tráia da Laje não paga nem fogo na roupa. Catireiro: O Toniquinho aí é danado. Bate na cangalha de um burro para a tropa toda entender. Vaqueiro: Olha só quem fala! A galinha que canta é a que bota. Catireiro: O que eu lhe devo? Vaqueiro: deve a meu pai, deve a meu irmão. Não me deve porque não sou bobo. Catireiro: Ah, isso são outros quinhentos. Vaqueiro: Quem toma a carapuça é porque lhe assenta. Você não passa de um passador de manta nos incautos. Catireiro (tomba o chapéu em cima dos olhos, deitado na pilha de sacos): Se está com raiva, tira a calça e pisa nela. Não custa nada. Vaqueiro (aos outros): O que faço com um tráia desses? Não agüenta nem uma gata pro rabo. Catireiro: briga foi feita para os cachorros.... Vendeiro: Vocês nunca combinaram. Por que estão brigando agora? Ferreiro (mudando de assunto): Ninguém me tira um nome que tenho aqui na cabeça. E juro que não vou daqui enquanto o Toniquinho não der ao menos uma dica do nome da mulher que o Zecapião está rosetando. Vendeiro: Ela é de meia-altura, tem os cabelos anelados e os olhos castanhos. Carreio (suspira): A minha então não é. A minha não tem os cabelos anelados. Capinador: Pois a minha tem, mas a do Roçador ali também tem e a do... (receia continuar falando). Lenhador: A minha é mais alta do que baixa. Ferreiro: A minha não é, pois não dou trégua. Canta: “Quem tem mulher bonita/ traga-a presa na corrente./ Eu também já tive a minha? e o jacaré levou nos dentes”. Retireiro: A minha não é boba, sabe o marido que tem. Encho a cara dela de balas de fogo. Lenhador: E na cara do corneador? Nem um tapinha? Retireiro (sobressaltado): O que está insinuando? Acha que é a minha mulher que está na berlinda? Lenhador: Eu de nada sei. Quem sabe de tudo é o Toniquinho aí, que é igual um padre. Todo mundo conta as coisas pra ele. Vaqueiro: A minha mulher sempre teve os cabelos compridos, quase batendo nos joelhos. Carreiro: Depois de cobrir as “partes”, claro, Vaqueiro; Ah vai amolar o boi, sô! Mas, como ia dizendo, foi uma sirigaita lá em casa e comprou a cabeleira dela, para fazer perucas para as damas da cidade. Depois disso é que ela fez o tal de “permanente”, contra a minha vontade. Catireiro: E contra a sua vontade, ela... Ah, fica bobo na praça que o jacaré te abraça. Vaqueiro (depois de virar o copo de pinga): estava falando com o dono dos porcos e não com a porcada (o Catireiro faz menção de levantar do saco de arroz em casca, onde está deitado, mas apenas inclina um pouco). Vendeiro: Vocês nunca combinaram... Fazendeiro (chegando)|: Vocês sentam em cima dos próprios rabos para falarem mal do rabo dos outros, não é, cambada? Ferreiro: estamos a falar das mulheres que estão dando. Fazendeiro: Todas as casadas estão dando para os respectivos maridos, ora essa. Ferreiro: Algumas são como pés de chuchu: trepam no muro e vão dar pro vizinho. Seleiro (gozando): Fala de experiência própria? Ferreiro (sem levar a mal): Epa, saltei de banda. O compadre aí sabe que não malho em ferro frio, sabe que em casa de ferreiro o espeto é de pau. Não sabe? Lenhador: Eu não sou daqui. Sou lá do brejo. Estou aqui é enxugando. Mas já ouvi dizer que no coração das mulheres daqui sempre cabe mais um. Fazendeiro: Mas não se pode generalizar. Ferreiro (maledicente): O Zecapião escolhe as freguesas é nas roças, aquelas cujos maridos ficam o dia todo fora, longe, no trabalho pesado, Lenhador: O que é da onça o sô lobo não come. Capitalista (chegando): Como é que é? Carreiro: Mata o homem e deixa a mulher. Capitalista (rindo): mulher e vinho fazem errar o caminho. Seleiro: Bem fiz eu, que sou feio e tenho a boca meio-torta, ao casar com a mulher feia e de boca meio-torta. Roçador: A minha também é feia de fazer dó. Não é mais feia porque é uma só. Fazendeiro: É como se lá diz: não há maior sossego do que mulher feia em casa, cavalo capão e horta de couve embaixo do rego. Retireiro: Mas é por causa de uma cara feia que a gente às vezes perde uma bela bunda. Roçador (sentindo-se ofendido, aos outros): Estamos falando na sala, a conversa ainda não chegou à cozinha. Ambrosina (chegando, ao Vendeiro): Queria duas rapaduras. Vendeiro (gozador): Queria... Não quer mais? Ambrosina: Faz hora não, seu Toniquinho. Está pensando que minha cara é relógio? Vendeiro: Entra lá no depósito e tira que eu anoto aqui na caderneta (a mulher entra e depois sái, com a mercadoria no samburá). Voz da Mulher do Vendeiro (no outro cômodo): Está cego, Tonho? Ela disse que ia pegar duas rapaduras e pegou três. Vendeiro: Faz mal não, Judite. Assentei quatro. Catireiro: Esse aí tem o olho limpo, conserta relógio no fundo dágua. Depois eu é que levo a fama de passador de mantas. Vendeiro:Você?! Te conheço desde o outro carnaval. Arranca os olhos dos outros e ainda lambe os buracos (o Capitalista sai). Catireiro (referindo-se ao Capitalista): esse aí é o assemelhado do Zecapião. Depois eu é que sou o comedor de mulheres do Arraial. Vaqueiro: Esqueci de perguntar a ele quanto está cobrando de juros, agora. Catireiro: Se cair na malha dele, está perdido. Ele não é pior porque é um só. Feito uma cobra caninana com os botes que dá. Em compensação tem uma mulher de se tirar o chapéu. Vale mais do que qualquer uma das nossas. Ferreiro: Epa, alto lá! Você venderia a própria mãe, que dirá a mulher. Não fale pelos outros, viu?! Seleiro: Vou dando o fora, antes que um engula o outro. Que Deus não me tenha por testemunha (sai). Catireiro (rindo): Em minha casa tudo está à venda, sempre! Faço até um leilão: quanto me dão por minha alma? Quanto dão pro meu rabo? Lenhador: Dou cinco paus por sua mulher... Catireiro: Cinco paus? Você não tem nem um para remédio. Lenhador: Dou cinco mangos. Catireiro: Ah sô, vai ver se estou lá na esquina, vai. Capinador: Esse negócio de mulher de um dar para outro ainda vai dar muito pano pra manga, muito pó pra cheirar, ah, isso vai. Ferreiro: Eu sempre digo que mulher casada cheira a defunto. Carreiro: Olha só quem está falando. Cavalo inteiro mandou lembrança. Ferreiro: Olha só quem está reclamando. O que você pede chorando que não lhe dou rindo? Carreiro: E aquela desculpa esfarrapada de pescar no Fundão? Lenhador (interferindo): Ah, sô, ele está mais para lá do que para cá, não agüenta uma gata pelo rabo. Mais um tempo e estará chamando urubu de meu louro. Ferreiro: Quem fala de mim tem paixão. Mas na verdade você tem razão. Ultimamente não pego nem resfriado. Vendeiro: O pior do avanço da idade é que a gente continua a desejar a mulher do próximo – e ela não deseja mais a gente. Roçador (quebrando cabeça ao conferir as contas na caderneta): difícil agora é provar que pulga não é elefante. Vendeiro: É o mesmo que tirar o papo sem ofender o pescoço. Se não confia na minha escrita é só comprar à vista. Ferreiro (saindo, ao Lenhador): Você sabe com quanto paus se faz uma canoa? Escreveu e não leu, o pau comeu! Lenhador: Êta ferro, heim? Catireiro (ao Lenhador): É verdade que quanto maior é o pau, mais bonito é o tombo? Lenhador: Você não sabe em que mato está lenhando... Catireiro: Sei muito bem. Qualquer negócio comigo depende da volta. Você sabe que a casca é que engrossa o pau, não? Lenhador: Por que não vai tomar banho na caixa de fósforo? Está pensando que comigo tudo é várzea? Vendeiro: Vocês dois aí nesse lenga-lenga. Quem puder mais que engula o outro, mas lá fora. Aqui dentro não. Lenhador (ainda ao Catireiro): deixa estar, jacaré, que a lagoa vai secar. Você tem o olho maior que o bucho. Mas que tenha cuidado. Não é só Deus que mata não. Catireiro (preocupado): Já cansei de dizer que se um dia mexi com sua mulher, foi por engano. Pensei que era outra mulher. Mas tenho que ficar dando explicação a vida inteira? Lenhador: Qualquer paixão me diverte. Para onde o vento der, o pau lá vai. Vaqueiro (interferindo): Vocês estão com a mania dos paus. Parece até que estão com um na frente e outro atrás. Lenhador (indicando o lugar onde está sua genitália): Este aqui está perguntando: cadê aquele vaqueiro sem vergonha? Vendeiro (preocupado): O que é isso, gente? Vocês não amarram a égua no mesmo pau, mas são farinha do mesmo saco. A cara de um, o focinho do outro. Briga é pra cachorro. Vamos matar o bicho? (entorna a cachaça nos copos, e todos bebem, uns fazem caretas, outros lambem os beiços). Roçador (a cantarolar): “Estou ficando velho/ Estou ficando fraco/ Estou encolhendo a pomba/ Estou espichando o saco”. Lenhador (referindo-se ao Roçador): Esse aí é bobo até onde chegou e mandou parar. Roçador: Bobo é ovo na boca de seu povo. Vendeiro (ao Carreiro): E você? Está aí quieto como a imagem de um santo. Carreiro: Estava pensando nos paus, uns nascem para santos, outros para tamancos. Vendeiro: Mas nem todo dia é dia santo. O que você vai levar hoje, de mantimento? Carreiro (desatento): Estou pensando na vida. A alegria do carreiro é ouvir o carro cantar. Roçador: Estou pensando é na mulher que o Zecapião está comendo. Lenhador: A minha é que não é. Quem fala demais dá bom dia a cavalo. Vaqueiro: Falou em cavalo é comigo mesmo. O que vocês estão aprendendo, estou esquecendo. Lenhador: Você chegou há pouco de fora. Aqui no Arraial - e sapo de fora não ronca. Vaqueiro: Quando um burro fala, o outro murcha a orelha. Lenhador: Onde mesmo você nasceu? Vaqueiro: Pra lá do toco e pra cá da raiz, onde o cachorro cagou e sua avó atolou o nariz. Vendeiro (ao Lenhador): Você podia bem dormir sem esta! Vaqueiro: E você, quando sai para trocar cebolas com os bobões das bibocas: o que pensa que sua mulher fica fazendo em casa? Catireiro: Envém você com mulher no meio outra vez. Não mexa com quem está quieta. Vaqueiro: Dou um boi para não entrar na briga, mas quando entro dou uma boiada para não sair. Catireiro: Quê boiada, você dá, sô? A do seu patrão? Deixa o Quinca Afonso saber disso? Vaqueiro (nervoso): A minha boiada é do Quinca Afonso e sua mulher é do (olha na porta o Capitalista voltando)...É de quem chega. É de quem chega primeiro! Capitalista (entrando, ressabiado): O que há de novo aí? Vendeiro: Muita galinha e pouco ovo (o Capitalista senta no balcão e fica olhando os outros, calado e sem graça). Roçado (ao Capinador): dizem que você é muito ladino e muito maludo... Capinador (rindo): Eu? Sou o último que fala e o primeiro que apanha. Lenhador: Dizem que urubu sem sorte atola até nas pedras. Catireiro (a respeito do Capinador, gozando): O que ele é, é mau calado. Dizem que já deu em dois soldados lá na estiva e ainda amassou a cabeça do cabo. (risos). Capinador (espantando um cão que entrou na venda): Olha só como ele não tem nem um pinguinho de vergonha de andar pelado... Sai do meio dos outros, cachorro! Lenhador (rindo): A bobagem ainda vai te carregar, um dia. Capinador: O bom julgador a si se julga. Lenhador: Coração bom está aqui no peito, só falta é trato. Roçador: Alguém aí ouviu o galo cantar e não sabe aonde. Lenhador: uns gostam dos olhos, outros da remela. Carreiro: Mulher é igual chita: uns acham feia e outros, bonita. Catireiro: Mas a galinha do vizinho é sempre mais gostosa do que a nossa. Lenhador: Essa é a opinião do seu vizinho? Catireiro (levantando-se, dando a impressão que ia partir para a briga braçal): Vou propor um enigma. Quem tem a mulher que dá pro Zecapião tem uma palha na cabeça...(todos se levantam dos sacos e do balcão, incomodados e enraivescidos, rodeiam o Catireiro que, amedrontado, põe as mãos sobre os olhos fechados, como se temesse uma agressão). Catireiro (corrigindo-se): Não falei por mal. A mulher que dá pra ele pode ser uma de qualquer um de nós, pode ser a minha, que apesar de ter os cabelos lisos, é muito ajeitada de corpo, tem boa altura, boa largura e... (aí todos desfazem a roda e se reacomodam na sacaria e no balcão). Carreiro (ao Catireiro): Vai avançando na lua pensando que é queijo, para ver o que é bom para a tosse. Roçador: Em vez de enigma, vou fazer uma pergunta com a reposta encavalada: O que tira o homem do sossego? Mulher bonita, cavalo inteiro e lodo dentro do rego? Vendeiro (alheiado): Quem não tem couro não faz barganha com a cuíca. Quem toca sino não acompanha a procissão. Catireiro: Chifre é igual dentadura: demora, demora, mas acostuma. Lenhador: Esse cara está querendo uns petelecos! Quando se procuram porcos, até as moitas roncam, não é meu amigo? (Pergunta ao Roçador). Roçador: Não me comprometa. Amigos, amigos, negócios à parte. (ao Capitalista) O senhor é que está com o burro na sombra. Soube que está comprando a Fazenda do Gabrielinho... Carreiro (baixinho, de forma a não ser ouvido pelo Capitalista): Comprando ou tomando na marra? Vendeiro (tentando agradar ao Capitalista): Quem compra terra não erra. Capitalista: Quem tem cabras, cabritos vende. Carreiro (saindo): Em lagoa de sapo, mosquito voa bem alto. Capitalista (indo para o fundo da venda): Quem tem cabeça de cera, não deve pô-la ao sol. Carreiro (já do lado de fora): Quem fala do Diabo, pisa no rabo. Vendeiro (contemporizando as possíveis ofensas): A vida boa está no prato raso. Capinador (saindo): Em terra de sapos, andemos de cócoras (imita um corcunda). Lenhador (saindo): Burro velho conhece o pau onde pode coçar. Roçador (saindo): Se tem formiga na escada é sinal que tem doce lá em cima. (entram um Velho e uma Velha). Catireiro (ao Capitalista): Esse velho e a velha dele. Os dois não parecem a tampa com o balaio? Velho (apontando o Catireiro e o Capitalista, ao Vendeiro): Os dois aí:o malho com a bigorna. Lá fora o sol declina na serrania, atrás da torre da Igreja. Os pássaros ainda cantam na alegria verde dos quintais. A meninada ri da cara amarrada do homem de poucos amigos. A mulher no chafariz põe a rodilha na cabeça, mas não agüenta o peso do pote. Um homem feio que nem embrulho de mandioca passa pela mulher do Caetaninho Maleita e suspira: “Ah, lá em casa!” Uma furreca vem buzinando. É sinal que o pãozinho de sal e o de doce acabam de chegar do Arraial Novo. As mulheres daqui não fazem mais quitandas? – O passarinho que vinha seguindo a furreca do Zé Pereira, pergunta. A buzina da furreca responde, cantando: “Elas só pensam em namorar!”