FICHAS DE VITROLA
A certeza que se tem (evidenciada em publicações anteriores) é que Jaime do Prado Gouveia, autor do livro “Fichas de Vitrola” (Editora Record, RJ, 2007), conhece e domina a técnica e a arte de lidar com as palavras na expressão das idéias e sentimentos. Com a naturalidade flexível e expansiva com que narra e descreve as situações de vida, despertando a localização e a vivência dos personagens no contexto das ambigüidades de uma paisagem humana evasiva e hesitante, ele sabe ser simples na complicação e complicado na simplicidade, alcançando o que almeja: a revelação do retrato realístico do ser humano disforme e perdido numa sociedade em polvorosa desagregação. A vida atual é assim, o mundo atual é assim – tudo está em andamento, e mesmo a corrosão da matéria chega a ser criativa sob o ponto de vista maleável da flexibilidade mental do autor. As palavras encadeam-se nos períodos e parágrafos sem pretéritas ligações, sem prenúncios axiomáticos disso ou daquilo. São as notas dos acordes no afinamento instrumental dos sons saltitantes que se aglutinam mais em função do clima melódico do que com a sua premeditada ressonância. Quando menos esperamos, do caos interior salta a bailarina de Nietsche, vivificando o contexto até então indefinido. Somos os outros também, assim é que somos. No conto “As Cinco Pontas da Estrela”, o das mulheres descabeceadas e fáceis e patéticas, e dos homens (seus humilhadores contumazes) ébrios no mortal desconsolo do descabimento existencial, começa a brilhar a luz mortiça dos inferninhos noturnos da grande cidade. No outro conto “A Nossa Infância” o absurdo da lógica estuda a lógica do absurdo – pois que no quebra-cabeça das incongruências é que pode residir a lucidez nebulosa que contextualiza a insanidade numa equívoca e necessária aceitação. “Este é o meu genuino povo”, constata sociologicamente o narrador de “Concerto Para Berimbau e Gaita”, na página 29, que logo percebe “como uma criança que não encontrou o bico” que “a claridade tem olhos vermelhos”. “Não vou escrever sobre heróis” nem sobre “o gigolô que tortura sua putinha”, - pois “todo mundo que tem um poderzinho quer torturar os outros”. Constatações assim, tão agudas, estão em consonância com o timbre arguto de quem trabalha a melancolia machista, que lembra, na disponibilidade, a incursão libidinosa do romancista norte-americano Philip Roth no escorregadio esforço de confirmar a supremacia moral e física do homem sobre a mulher, esforço que prejudica, fundamente, as relações de ambas as partes – e que projeta o lado desconcertante e quase sempre sombrio da literatura moderna. “A dor de corno estética”, oportunamente referida na página 146, não é uma exclusividade do bebum notívago afeiçoado aos arcanos da criatividade artística, mas participa do sentimento que afeta qualquer pessoa que ousa cultivar o exercício das chamadas belas artes. Doa ou não ao leitor desprevenido, Jaime do Prado Gouveia não escreve para engambelar quem quer que seja. Sabe (e nós sabemos) que o desencanto individual do ser humano na multidão é o mesmo na solidão e na convivência dos que afogam o pensamento e o sentimento no lago etílico das casas noturnas, onde o prazer de beber e comer logo se transforma no desprazer generalizado das tertúlias. A ressaca precede todo reinício dos desencontrados encontros, por assim dizer. A impressão que se tem é a do repeteco da fossa sentida e propiciada pelos componentes europeus e brasileiros das chamadas gerações perdidas dos existencialistas, surrealistas e modernistas. Fica no ar a dúvida se o pendor etílico precede ou sucede à náusea de viver, se é causa ou conseqüência da meditação individual em termos sociais. Enfim a dúvida de sempre: pensar e sentir fere e dói? O álcool e a droga curam e apaziguam? Os personagens do livro estão sempre partindo juntos para a outra morte que parece ser cada capitulo desta vida sofrida e custosa, na qual a mulher passiva defronta os “olhares ferozes dos homens que ela bem gostaria de ter força e coragem para cravar as unhas” (página 104). Impossível a leitura programática e mecânica deste portentoso livro de Jaime do Prado Gouveia - e também dos de outros autores igualmente viscerais, nos quais o leitor tem que se reprimir, resfolegar, sofrer as conseqüências do impacto diante do purgatório e da redenção e, assim, sair ileso dos atritos eletrizantes. A vida é difícil – e só o que é difícil merece um tratamento estético regenerador. Assim penso no meio-termo do pessimismo e do otimismo nesta altura dos acontecimentos políticos-sociais.
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