DUAS, TRÊS AQUARELAS
1 - A Fruta de Jacarandá. Já vai longe o tempo, na Picada de Goiás, em que os bandeirantes e os garimpeiros levavam para os filhos os doces, as doces frutas de jacarandá. Também nos primórdios do século os campos eram pródigos e belos - os adultos ainda diziam, ao sair de casa: “Pitangas? Goiabas? Mamacadelas?” E as crianças da casa respondiam: “Queremos as frutas de jacarandá!”. Hoje o que impera é a lei da corrupção dos inquisidores de pássaros nos porões palacianos, dos caçadores de cabeças nos campos e nas capoeiras. E não há cristão que agüenta tanta violência do diabo a quatro nos dias e nas noites, as ciladas nas esquinas e nos escritórios, e mesmo a falta do lobo e da onça no capão que rodeava a fontinha de nossa infância.
2 - Os Três Nomes do Gato (*).
Dar nome aos gatos não é tarefa fácil nem fútil.
Muitas vezes quando digo que o gato deve ter
TRÊS NOMES DIFERENTES,
olham-me de novo, julgam-me biruta.
Mas assim é, por mais que estranhem e gozem.
Primeiro o nome corrente, de uso da família,
que pode ser Poetinha, Alípio ou Conceição.
Depois o escolhido de pessoas refinadas
(extravagantes ou mesmo sobriamente galantes),
como Menelau, Polonaise ou Pixinguinha.
Por último o mais íntimo e solitário,
que ele mais necessita para manter o orgulho
e esticar o bigode, enrodilhar-se na cadeira
ou pular o muro como num vôo,
e que pode ser Diadorim, Caracóia ou Ana Lívia Plurabelle,
que nenhum outro gato deste mundo ostenta.
Mas além desses e acima de tudo e de todos
há um nome especial a preferir
e esse ninguém sabe ou saberá.
É o nome que nenhuma pesquisa humana pode descobrir
e que só o próprio gato sabe,
mas que nunca confessará a ninguém.
Assim,
se ver um gato em profunda meditação,
os olhos abertos mas cegos, as unhas em inocente repouso,
a razão é sempre a mesma:
sua mente está ocupada na contemplação de seu profundo
e inescrutável e singular NOME.
(*) Paráfrase de um poema de T. S. Elliot.
3 – O Retorno do Oprimido.
Quando voltei ao arraial das metáforas,
a névoa doía um tanto nas lombadas
e outro tanto no passivo coração apertado
(a dor de dentro a responder à de fora).
A angústia capitulava toda a perspectiva.
Por que agora? Não já paguei o que devia?
O carro derrapou numa das curvas,
cantou nos pneus, calibrados, no vazio.
A rua íngreme e bêbada já me levava
ao alto dos morros e das árvores.
As casas olhavam (janelas abertas
para dentro e para fora), moradias
da paixão, da anistia e da tocaia.
O parabrisa filtrava o diagrama, rompia
o calçamento, adentrava a felicidade
(essa coisa súbita e regressiva).
O contexto, lado externo dos sentidos,
vinha mover-me os lábios no pensamento
do trecho súbito e hostil, hirto e frio
(o que vem sem ser chamado, pensei,
silencia na alma o esforço da alegria,
rasura o esforço da roça sazonada).
De novo o sol a brilhar na chuva.
A casa chega bem perto do carro
(metade estranha, metade familiar):
as flores de fora, as seivas de dentro
(o que passou dá vida ao que vai passar?
O que está lá dentro, no fundo, atende
ao chamado do que está aqui fora?).
No galho decepado da velha magnólia,
o sabiá ainda canta, apesar de golpeado.
1 Comments:
Suas paráfrases são deliciosas (como todos os demais textos)! Você precisa providenciar um livro só com elas, para o público poder levar para todo lugar... Ótimo! Você faz depreender o sentido pleno das palavras alheias e melhor concentrá-las numa nova construção. Esta sensibilidade aliada à habilidade de recompor as palavras é fantástica, e rara. Obrigada! Marilda Mendes.
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