domingo, junho 22, 2008

DUAS, TRÊS AQUARELAS

1 - A Fruta de Jacarandá. Já vai longe o tempo, na Picada de Goiás, em que os bandeirantes e os garimpeiros levavam para os filhos os doces, as doces frutas de jacarandá. Também nos primórdios do século os campos eram pródigos e belos - os adultos ainda diziam, ao sair de casa: “Pitangas? Goiabas? Mamacadelas?” E as crianças da casa respondiam: “Queremos as frutas de jacarandá!”. Hoje o que impera é a lei da corrupção dos inquisidores de pássaros nos porões palacianos, dos caçadores de cabeças nos campos e nas capoeiras. E não há cristão que agüenta tanta violência do diabo a quatro nos dias e nas noites, as ciladas nas esquinas e nos escritórios, e mesmo a falta do lobo e da onça no capão que rodeava a fontinha de nossa infância. 

2 - Os Três Nomes do Gato (*). Dar nome aos gatos não é tarefa fácil nem fútil. Muitas vezes quando digo que o gato deve ter TRÊS NOMES DIFERENTES, olham-me de novo, julgam-me biruta. Mas assim é, por mais que estranhem e gozem. Primeiro o nome corrente, de uso da família, que pode ser Poetinha, Alípio ou Conceição. Depois o escolhido de pessoas refinadas (extravagantes ou mesmo sobriamente galantes), como Menelau, Polonaise ou Pixinguinha. Por último o mais íntimo e solitário, que ele mais necessita para manter o orgulho e esticar o bigode, enrodilhar-se na cadeira ou pular o muro como num vôo, e que pode ser Diadorim, Caracóia ou Ana Lívia Plurabelle, que nenhum outro gato deste mundo ostenta. Mas além desses e acima de tudo e de todos há um nome especial a preferir e esse ninguém sabe ou saberá. É o nome que nenhuma pesquisa humana pode descobrir e que só o próprio gato sabe, mas que nunca confessará a ninguém. Assim, se ver um gato em profunda meditação, os olhos abertos mas cegos, as unhas em inocente repouso, a razão é sempre a mesma: sua mente está ocupada na contemplação de seu profundo e inescrutável e singular NOME. 
(*) Paráfrase de um poema de T. S. Elliot. 

 3 – O Retorno do Oprimido. Quando voltei ao arraial das metáforas, a névoa doía um tanto nas lombadas e outro tanto no passivo coração apertado (a dor de dentro a responder à de fora). A angústia capitulava toda a perspectiva. Por que agora? Não já paguei o que devia? O carro derrapou numa das curvas, cantou nos pneus, calibrados, no vazio. A rua íngreme e bêbada já me levava ao alto dos morros e das árvores. As casas olhavam (janelas abertas para dentro e para fora), moradias da paixão, da anistia e da tocaia. O parabrisa filtrava o diagrama, rompia o calçamento, adentrava a felicidade (essa coisa súbita e regressiva). O contexto, lado externo dos sentidos, vinha mover-me os lábios no pensamento do trecho súbito e hostil, hirto e frio (o que vem sem ser chamado, pensei, silencia na alma o esforço da alegria, rasura o esforço da roça sazonada). De novo o sol a brilhar na chuva. A casa chega bem perto do carro (metade estranha, metade familiar): as flores de fora, as seivas de dentro (o que passou dá vida ao que vai passar? O que está lá dentro, no fundo, atende ao chamado do que está aqui fora?). No galho decepado da velha magnólia, o sabiá ainda canta, apesar de golpeado.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Suas paráfrases são deliciosas (como todos os demais textos)! Você precisa providenciar um livro só com elas, para o público poder levar para todo lugar... Ótimo! Você faz depreender o sentido pleno das palavras alheias e melhor concentrá-las numa nova construção. Esta sensibilidade aliada à habilidade de recompor as palavras é fantástica, e rara. Obrigada! Marilda Mendes.

12:09 PM  

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