quinta-feira, junho 11, 2009

AMEAÇA (OUTRA) DE DESCARACTERIZAÇÃO

A ameaça absurda de transposição dos trilhos ferroviários é só o que faltava para aumentar o volumoso escarcéu da administração pública divinopolitana, autora, ao longo dos anos, de lamentáveis hecatombes de valiosos ícones históricos. Se Divinópolis é hoje um pólo regional em todos os sentidos, por ser uma das maiores cidades de Minas e do Brasil, sabemos que toda essa amplitude foi alcançada principalmente pela implantação, aqui, da ferrovia. Se tal façanha não tivesse acontecido, o que seria, hoje, da cidade? Uma cidade igual a milhares de outras – e nunca esse pólo regional que bem conhecemos. A ferrovia, com suas ramificações que vinham de São Paulo, passava por aqui, entroncando-se com a linha que vinha de Belo Horizonte – e daqui estendia-se aos rincões do Sul de Minas, do Triangulo Mineiro, do Vale do Jequitinhonha, atraindo as fontes de riquezas da modernidade. A industrialização com o cabedal da mão de obra especializada, a educação com a variedade de cursos, a comercialização com o trânsito de seus bens, a acumulação do capital e do trabalho numa economia de mercado consistente há quase um século.... Em nome de toda essa virtuosa herança, apelamos para a consciência dos presuntivos donos do poder público municipal: não tirem os trilhos de onde estão, mesmo inativos eles representam, sempre, um meio alternativo de transporte, de muita importância no passado, no presente e no futuro. Atentem para o fato inquestionável de que as cidades e regiões populosa como as de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, tantas de Portugal, Alemanha, França, Bélgica, Itália, são beneficiadas pela ação das bucólicas e eficientes locomotivas no trabalho e no lazer da indústria e do turismo. Para melhormente conceituar o que acabo de escrever, transcrevo trechos (páginas 63 e 64) de meu livro “Memorial de Divinópolis”, publicado em 1991: “A mão de obra industrial que veio com a estrada de ferro criou uma potencialidade empresarial que floresceu nos anos seguintes. Os técnicos do século XX viraram a página das provisões de cargos e ofícios. Da roça ainda vinham os balaios, as gamelas, o fumo de rolo, o sabão preto e a rapadura; do litoral os tropeiros não mais traziam a última moda do vestuário, o último passo de dança. Os especialistas das novas modalidades chegavam de São João Del Rei, de Ribeirão Vermelho, de Cruzeiro, de Paracatu, de Carangola. O ferroviário era o homem lido e corrido. Estagiava nas estações, perpassando a escala de serviços, perfazendo o rodízio geográfico das temporadas. Podia vir de Passa Quatro ou de Ibiá ou ir daqui para Perdões ou Azurita e depois retornar com alguns anos a mais nas costas, alguns filhos nas cadeiras, algumas promoções na carteira de trabalho. A RMV (Rede Mineira de Viação) inaugurava na região a sistemática funcional de uma grande empresa, despertando a consciência profissional dos trabalhadores, transformando-os de simples jornaleiros sem vínculos empregatícios a homens de direitos assegurados em contratos coletivos de trabalho, promovendo-os, por assim dizer, de roceiros a operários. O ferroviário tinha diferentes funções, cargos e salários: feitor, mestre de linha, agente, telegrafista, guarda-chave, foguista, maquinista, torneiro, frezador, soldador, fundidor, caldeireiro, montador, eletricista, bombeiro, serralheiro, carpinteiro, desenhista, pedreiro, etc. Até então a cidade desconhecia uma gama tão rica de habilidades funcionais, agora a seu serviço nas horas vagas da labuta na Rede Ferroviária. O nosso conceito de cidade operária nasce aí. Tempos depois, na implantação do parque siderúrgico, a mão de obra disponível não dependeu de dispendiosas reciclagens e deslocamentos. A sua Escola Profissional, que funcionou de 1942 a 1972 (foi precursora da atual Escola do SENAI), tinha a finalidade de formar artífices para seus próprios quadros funcionais, mas a capacidade formadora era maior do que a demanda de novos técnicos: então muitos iam trabalhar nas indústrias locais e nas de outras cidades. Mas chegou-se, depois, a um ponto que praticamente todos os encarregados de serviços gerais e chefes de oficinas eram ex-alunos da citada Escola Profissional. A Oficina da estrada teve sua construção iniciada em 1910, foi concluída em 1917 e no ano seguinte era administrada por Aquiles Lobo, Manoel Carregal, Sideney Martins, Pedro Silva e Oswaldo Fernandes. Sua área construída media 106.595 m2, da qual 30.780 m2 eram cobertos. Foi considerada uma das maiores e mais bem equipadas da América Latina, montando, desmontando e reparando todas as locomotivas a vapor que percorriam os trilhos das chamadas estradas de ferro de Minas Gerais. Fabricava peças de reposição e até as de requisição informal, para atender emergências da própria ferrovia e também as carências dos empregados em suas moradias na cidade. Os técnicos conseguiram renovar o processo de fabricação de rodas fundidas, criando o know-how aproveitado depois pelas ferrovias de todo o País. O Sr. João Morato orientou a fabricação de locomotivas (aqui mesmo): uma de quatro cilindros, em 1920, que não deu certo; e outra em 1941, chamada de “Carmem Miranda”, que deu certo – e passou a rodar nos trilhos das linhas então existentes. No ano seguinte foi construída a que chamaram de “Dircinha Batista”. “A gente fazia a maioria das coisas por criação da gente mesmo – e dava certo”, ele, o João, chegou a dizer. Em1942 a Oficina da cidade de Cruzeiro (São Paulo) foi desativada e 90% do seu pessoal foi transferido para Divinópolis. O número de empregados, só na Oficina da Rede, subiu de 650 para 900 – e o número de Turmas aumentou de 22 para 35” (tudo isso na área administrada pela Agência de Divinópolis, agora ameaçada de extinção.