FILMES E LIVROS
Ensaio Sobre a Cegueira. Filme de Fernando Meireles, baseado no romance de José Saramago. A tela alternando na escuridão e na brancura, tateando na procura do “clima” da cegueira generalizada das pessoas na cidade metropolitana. Aos poucos surgem as constatações e ilações do espectador interessado na apreensão do que se quer dizer: as necessidades básicas e os instintos primários se digladiam; não há sensualidade na violência, o sadismo é um aborto da natureza; o viés erótico seria o da limpeza psíquica e não no afundar-se no lamaçal social; o masoquista é um abstêmio nato, que insiste em se clonar, copulando. A cegueira não leva à parte alguma, rodopia na solidão, como uma piorra no ar da escuridão. O sofrimento é algo interminável: quando começa na infância, vai com a vítima até seu último suspiro. Assim é que o mundo acaba para quem morre. O estômago, órgão físico, é mais carente que a libido, órgão abstrato. Entre os cegos não há feiúra, ou tudo é feio. Shakespeare já dizia que “não pode esquecer, quem cego ficou, o que os olhos viram”. Se o pior cego é o que não quer ver, o melhor é o que quer ver, sem ver? Contos da Lua Vaga. Direção de Kenji Mizoguchi. Fábula do século XVI no violento Japão feudal. Drama, fantasia, suspense, insinuação sexual, violência imoderada. Os letreiros são imagens. A chibata é uma palavra existencialmente japonesa? A alma não é espiritual, é apenas corporal. E é sempre noite na miséria cotidiana. A violência produz alguma beleza, quando luta contra a morte? Sim, sim, desde que não entre na carne até à medula. “O nosso mundo é um domicílio temporário”, canta a camponesa em sua lavoura de cada dia. Linda como é, mesmo assim apesar dos infindos e infinitos percalços. O adeus de uma criança é um parágrafo do inclemente texto da eternidade. “O amor é a seda mais fina, que pode mudar e enfraquecer”. A fonte para o banho do amor é o corpo de cada um dos amantes. Rosto a rosto, sexo a sexo: a felicidade momentânea! Depois vem a promiscuidade da gandaia – e a alternativa mais exígua: o valor da vida ( o amor) é o preço da morte, cuja sombra paira no rosto das pessoas. A vida é uma viagem sem volta? A criança é uma lágrima cintilando nos olhos do pai e da mãe? Depois vimos em DVD os outros filmes (a Delta Locadora da Praça da Catedral tem mil e um dos clássicos do cinema desde a década de vinte): “Um Barco e Nove Destinos”, “Suspeita”, Sabotador”, “Agonia de Amor” (todos do mestre Hitchcock), “Alma em Pânico” (de Otto Preminger), “Ama-me Esta Noite” (de Rouben Mamoulian), “Trágico Amanhecer” (de Marcel Carné): ah, o arroubo dos sinos de bronze, a escadaria da morte, sempre descendo com seu tiquetaque nas portas e janelas. Ah, a mulher é uma árvore florida, as pessoas apaixonadas são as mais vivas, afirma o roteirista Jacques Prevert. Jean Gabin tem um olho triste e outro feliz? E a Arlety, a cândida donzela em noite pecaminosa: nenhum anjo é mais puro nem mais belo. Depois, na mesma semana, vimos “Grandes Esperanças”, de David Lean e “Correspondente Estrangeiro”, do nunca demasiadamente visto Hitchcock, com a minha namoradinha da adolescência (Laraine Day), personagem de meu romance inédito “Tentação Noturna”. É sempre noite tenebrosa sobre aquele tempo de guerra insana. Os olhos na escuridão são os únicos pontos luminosos do cenário. A câmera sem flash só capta vultos de pássaros benignos, também noturnos. Os Livros, Ah, Os Livros! Só vou falar um pouco (o tempo e o espaço escasseiam, na medida que passam, ou são preenchidos), sobre alguns dos livros de Lya Luft (minha esposa adora a obra dela – e tenho o prazer de lembrar que participei com ela de um Seminário de Cultura em Brasília há muitos e muitos anos). Ela escreve de tal maneira tão bem que consegue fazer do próprio cotidiano uma aventura singular e da família toda a humanidade. Assim é e assim está em “A Asa Esquerda do Anjo”: “a vida em casa de nossa avó transfigurava – eu acreditava que o mundo podia ser belo”. Assim acontecia toda vez que a mocinha Anemarie chegava do internato. O olhar perscrutador da avó atingia os cantos da alma que a menina preferia esconder. Ela inspirava compaixão “porque devia ter sido menina e bela.... E agora? Que água tivera coragem de se derramar em terra tão seca?” “De noite fantasmas, de dia, dúvidas”. É assim que ela substitue os fatos reais em pesadelos mentais (o conto agora é “No Fundo das Águas”). As desavenças, os achaques, os dramas e tragédias do dia-a-dia mesquinho transformam-se em sortilégios, duendes, visões tenebrosas, simbolismo nevrálgicos, realismos camuflados em obscuridades: o supernatural inaceitável em sobrenatural inexplicável. Em “A Pedra da Bruxa”, o enterro simbólico dos objetos do filho desaparecido na montanha. História triste como o silêncio da morte – para quem já o sentiu, ouvindo-o. E depois, na história do anão: como ela sabe figurar lágrimas em poucas palhetadas! É uma literatura para inundar o coração de uma chuva que depois desanuvia, sem desaparecer. Sensitiva, compassiva, pertinente, nela (Lya Luft) a imaginação é um lugar comum, um toque ao mesmo tempo intuiutivo e premeditado. O conluio afetivo e surrealista da meninazinha a confabular com a vovozinha: algo tão realisticamente fantasioso que não se distingue a coisa real da imaginada. A vida e a morte, felizes. Os personagens que mais belamente brotam de suas páginas são as crianças mimosas e mimadas, especulativas e autodidatas, sábias na ingenuidade e na pureza das inexplicáveis convicções. E ao lado das crianças alvissareiras, vêm as velhas e velhos moambeiros, superticiosos, enfáticos na já desvalida, senil sabedoria. Os personagens jovens e maduros perfazem os elos de ligação: sofrem de utilidade, como diria Vinicius de Morais a respeito dos dentistas. Dão a impressão que só vivem para fazer o resto da humanidade sofrer. E acontece de repente, ao longo da leitura, o viés comovente, umedecendo os olhos do leitor antes enxutos e espertos e expectantes. Pronto, ponto final. O leitor fecha o livro e vai despistar a emoção, entreter a consciência com algo mais suportável, sabendo, contudo, que quando recomeçar a leitura terá novamente que arcar com o ônus (?!) do deleite da ternura humana na tristeza e na alegria da vida. A verdadeira literatura é assim mesmo: cara à sensibilidade e à inteligência – e não deixa por menos.
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