terça-feira, novembro 22, 2005

ESCRITORES DE BRASÍLIA

Se muitos políticos de Brasília estão enfeiando e desvalorizando a Política, em contrapartida muitos escritores de Brasília estão embelezando e valorizando a Literatura. Suponho que muitos desses bons escritores são funcionários públicos desencantados com a disfunção do maquinismo do poder público e, na medida do possível, tiram de vez em quando uma licença poética e fazem uma necessária limpeza psíquica para continuarem a viver na roda (rodeio?) dos performáticos roedores da nação. Ninguém é de ferro para agüentar diuturnamente o cenário da desmoralização, não é mesmo? Aí esses talentosos escritores e escritoras regressam mentalmente a outros tempos e lugares, ficam munidos materialmente dos elementos criativos para contornarem as estrepolias politiqueiras, agora mesmo tão desnudadas pelo crivo (redentor? pizzarento?) de tantas comissões parlamentares de inquéritos. I - Pupilas Ovais, de Rosângela Vieira Rocha. O regresso subliminar, evocativo (revigorante?), à vida corriqueira de sua luminosa Inhapim: meticulosa radiografia de uma cidade mineira de pequeno porte e de colossal impregnação vitalícia. Que começa com a invocação matinal dos desejos, e segue pelos dias, meses e anos rotineiros que não machucam, até sentir-se inquilina de um certo corpo alheio diante da cena emblemática de um ser malévolo corrompendo um ser benévolo, ou seja, a das pupilas ovais da jaracuçu hipnotizando as pupilas normais do sapo. A dicotomia das visões pensamentais e oculares, o pequeno enxoval de uma velhice finalmente assumida, apesar do ilusionismo perseverante; a oportuna (e ocasional) apropriação dos versos de uma canção que passa do gênero popular para o pessoal. e depois a boca fica seca, a língua empedrada, a tontura da desilusão. A infeliz conseqüência dos anos passando: a profunda entrada na testa, a feiosa barriga estufando, tanta refrega diante da eterna mineirice da sopa de inhame com lingüiça. A mocinha crédula a dormir nua, na casa dos tios, vestindo o pensamento e os sonhos de pilhas e mais pilhas de livros que um dia escreveria. E aí vem a pergunta lancinante: o estupro suja mais a vítima que o algoz, que continua lampeiro, jaracuçu na tocaia? E depois vem a constrangida, infausta generosidade da vítima diante da hipocrisia generalizada do meio social, que proporciona a pútrida impunidade da atroz vilania. Aí então só mesmo o recurso do chá quente para empurrar as lágrimas igualmente tórridas. Para o destempero da vida, uma boa salada bem temperada, ela parece dizer. O rol das estórias desencontradas do-cada-dia de cada pessoa de casa-em-casa da pequena cidade do interior: o rosário das penas comuns, distribuídas pela fatalidade: a sorte ou sina é o amargo prêmio no cotidiano de cada uma das pessoas. E aí vem de repente a pobre viúva a rezar na patética igreja os mistérios dolorosos: sente que se se tocar, só encontrará o próprio coração, a bater fora do ritmo. Então o amor não é regido pelo merecimento?, pensa a mocinha apaixonada pelo vampiro do seriado de tevê, a esmiuçar indefinidamente os encantos fantasiosos de Edimburgo, palco sobrenatural das sombras tenebrosas do seriado repentinamente tirado do ar por escassês de audiência. Ela fica sem a fantasia, mas agasalha dentro de si a certeza de que a esperança e o desejo são dois sentimentos que nunca lhe faltarão nos esvaziados dias porvindouros. Mais consciência e menos culto da personalidade, a autora parece dizer nas entrelinhas, olhando, angustiada, onde só se vê políticos cabalando. Ah, é assim mesmo a naturalidade da articulação retilínea de uma narrativa eivada de uma espécie de facilidade na qual as estórias contam-se sozinhas, prescindindo de seus contadores. Aí está, pois, a inteireza do livro, não como a de um lençol curto para o frio, mas como um ventilador para arejar a sufocante temperatura ambientada num humanismo desvirtuado, numa poética cerceada pelo prosaísmo circunstancial. Rosângela Vieira Rocha, sem forçar a idéia, sem colorir a imagem, vai livro adentro e afora confirmando o moinho rifoneiro, segundo o qual quem conta um conto aumenta um ponto. Ela, em vez do ponto final acrescenta, não a interrogação ou a exclamação. mas,sim, a vírgula, ou o ponto e vírgula, ou os dois pontos, ou, melhor, a reticência...