terça-feira, novembro 22, 2005

O HOMEM COM A ENXADA

Assim eu via o homem com a enxada no eito, naqueles tempos, naquelas palavras de Edwin Markhan (*): vergado aos tonéis do tempo, ele se vale da ferramenta que é seu corpo e fita, desencantado, o vazio circundante. A velhice prematura mudou seu rosto, Que ainda sofre as devastações dos maus tratos. Quem foi que sufocou sua indignação, que máquina o amansou no roçado da fazenda? quem assim descoloriu seus olhos? quem apagou o clarão de sua mente? É este o ser que Deus criou para espelhar a beleza de Sua imagem, a verdade de Sua semelhança?, para proteger os elementos da natureza e no caminho das estrelas aventurar-se? É esta a criatura destinada a captar o tempo e esgota-lo, sem esgotar-se? É este o sonho de Deus, que virou o pesadelo de Deus? Da sacada ao último vórtice do inferno não há visão mais terrível do que esta mais prenhe de denúncias contra o erro mais prenhe de presságios contra o abuso mais prenhe de ameaças contra o mundo inteiro. Um abismo se abre entre ele e Platão. O que vale o frêmito das plêiades em face do seu labor inócuo e escravo? E mesmo o rasgo alucinado da aurora e a poética gestação das rosas? Por esse vulto sem aura os tempos repressivos espionam. E, esquálido a lutar no eito infinito, ele é o exemplo vivo das vivas distorções. Por seus lábios murchos e descorados toda a humanidade traída e deserdada clama surdamente aos juízes da terra, num clamor com o timbre da profecia. Ó empresários e políticos de toda parte: o fruto de vossa gestão é esse ser encarquilhado, quase monstruoso ao despedaçar-se? Quando devolvereis a ele a humanidade, a seus olhos a luz, a seu espírito a substância? Quando a música entrará de novo em seus poros e os sonhos em seus desejos, desagravando as infâmias, as perfídias, as desgraças? Ò tecnocratas desumanos do planeta: como o futuro se dará comesse homem, quando com ele, num crepúsculo, defrontar? Que respostas terá para suas perguntas, quando a revolta se tornar um ciclone abrangente? O que estará reservado aos privilegiados de hoje (os mesmos que o reduziram à última baixeza), quando esse pobre homem combalido, rompendo o mutismo secular de tantos outros, replicar bem alto e forte? 

(*) Edwin Markhan (l852-l940), poeta norte-americano, escreveu o poema “O Homem coma Enxada”, depois de ver o quadro mundialmente famoso de Lillet. O texto acima é uma tradução livre, calcada (em termos de paráfrase), numa tadução de Oswaldino Marques, publicada na edição bilíngüe de “Poemas Famosos da Língua Inglesa”, Editora CivilizaçãoBrasileira, Rio de Janeiro, l956.