QUASE UM TERÇO DE MINAS GERAIS
Em nossa casa, durante a infância e adolescência dos filhos, sempre programávamos as duas férias escolares anuais visando o aproveitamento simultâneo da recreação e da cultura. Assim íamos aos lugares aprazíveis: Caraça, Furnas, Pocinhos de águas Verdes, São Tomé das Letras, Aiuruoca, Caldas, Angra dos Reis, Serra da Canastra; aos lugares salutares: Cambuquira,Caxambu, Lambari, São Lourenço, Poços de Caldas, Araxá; às praias litorâneas: Cabo Frio, Búzios, Copacabana, as de Santa Catarina e as do Espírito Santo; às cidades históricas: Parati, Aparecida do Norte, Barbacena, São João del Rei, Tiradentes, Campanha, Congonhas de Campos, Sabará,Caetés,Barão de Cocais,Belo Horizonte, São Paulo, Santa Bárbara, Ouro Preto, Mariana, Serro, Diamantina, Baependi. Viajávamos por alta recreação, sem seguir os roteiros turísticos, ecológicos e históricos. Quando tomamos conhecimento dos roteiros das agências de viagens e dos meios de comunicação é que notamos a injusta ausência neles de três cidades que conheceram o esplendor da fase aurífera das minas gerais por mais de cem anos: estou falando de Pitangui, a sexta vila criada em 1715; de Itapecerica, a nona vila criada em 1789; e de Paracatu, a décima terceira, criada em 1798. O território delas emendavam-se, perfazendo uma área que abriga hoje centenas de municípios, que começava no Sul de Minas, passava pelo Oeste, ia ao Triângulo, seguia pelo Alto do Paranaíba até desembocar no Estado de Goiás, confrontando, à esquerda com os Estados de São e de Goiás. A grandiosidade geográfica está bem estampada no mapa, circunscrevendo grandes rios (Pará, São Francisco, Paranaíba), destacados relevos (Canastra, Saudade), planaltos e campinas, várzeas, cerrados e capoeiras, jazidas remanescentes de ouro e diamante (Itapecerica, Estrela do Sul, Paracatu), sítios arqueológicos (Pains, Arcos, Araxá, Triângulo Mineiro), as chamadas Picadas de Goiás (o caminho-mestre e as variantes abertas pelos bandeirantes paulistas em demanda às minas de Goiás, quando as das Gerais começavam exaurir). O deslumbrante paisagismo natural: as verdes extensões que se perdiam de vista, cortadas aqui e ali pelo fluxo das águas correntes formando os remansos, as cascatas e as cachoeiras; a amenidade do clima constantemente oxigenado pela cobertura vegetal inteiriça, continuamente regenerada; pelos bons ofícios da cultura popular que preserva um certo arcaísmo tecnológico nos chamados grotões, rico no anedotário, na literatura oral, no artesanato decorativo e funcional, no cancioneiro popular, no comportamento mineireiro, na cozinha caipira mais requintada, no moinho rifoneiro da sabedoria popular, tudo configurando um dos países das gerais, de identidade quase autônoma, como se saltasse das páginas da extensa mineiridade roseana, tudo assim na cultura material dos fazeres e na cultura imaterial dos dizeres. Sob o ponto de vista histórico há uma rica bibliografia a respeito, e neste ponto Pitangui é melhormente dotada: o livro “Pesquisando a História de Pitangui”, de Silvio Gabriel Diniz, abre as páginas do sucesso local desde o descobrimento,passando pela fartura da mineração, do povoamento, das cartas de datas e de sesmarias, da organização política da Casa da Câmara e do Senado da Câmara, a descrição topográfica, os bens e as rendas, os fatos e feitos, remetendo a outros historiadores como Feu de Carvalho, Salomão de Vasconcelos, Basiliode Magalhães Abílio Barreto, Revistas e Códices do Aquivo Público Mineiro etc. Já Itapecerica dispõe de consistentes fragmentos em livros de Dom Gil Antônio Moreira, Constantino Barbosa, José Bernardino Correia, Célia Lamounier Araújo, e esparsas (e boas) publicações de Antônio C.F. Paz, Jorge Malaquias do Couto, Levy Beirigo Malaquias e Outros, mas prescinde, ainda, de um texto abrangente, que especifique as principais coordenadas de seu processo histórico. Sabemos da importância de seu alinhamento no contexto da colonização, os efeitos de sua polarização regional, mas ficamos na ausência de um inventário interpretativo das causas, das conseqüências e do legado permanecente. Isso falta não só à Itapecerica como também aParacatu:a edição de uma obra que esclareça, narrando, descrevendo e definindo sua história, ou seja, a marca de vida humana em seu antigo e dilatado espaço, em seu antigo e dilatado tempo. A respeito de Paracatu, o distanciamento geográfico dos grandes centros dificulta o entendimento de suas coordenadas históricas e eu, pessoalmente, só disponho do lado literário da região, que é rico e instigante, mencionado por autores como Oliveira Mello,Alceu Amoroso Lima, Afonso Arinosde Melo Franco, FernandoRubinger, Maria da Conceição Amaral e os estrangeiros John Mawe, Barão Von Eschwege, Saint-Hilaire, Emanuel Pohl, Bernanos. A visão panorâmica das três cidades é de uma paisagem colonial mesclada, oferecendo os sinais evolutivos na variação dos estilos arquitetônicos amalgamados na sucessão de mais de dois séculos. São três cidades que primam pela ausência (quero dizer, que tanta falta faz) no calendário dos eventos oficiais e no roteiro das programações turísticas, que deviam atentar mais para a conciliação do gosto do entretenimento com o do entendimento, sem dissociar o contentamento da aprendizagem instintiva, descansativa.
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