terça-feira, fevereiro 21, 2006

CANTAGALO – A BACIA DAS ALMAS

Fragmentos. 

...página 9 ...: Os males de toda parte estão em cada um de nós. Cheguei à zona boêmia com um pé atrás, com os olhos pequenos para ver, como diria Drummond, tanta violência por metro quadrado, neste mundo. Era ali que ia afugentar minha solidão, que ia aninhar meu desamparo? Saia do espeto para cair na brasa? Pois era justamente ali que todas as solidões do mundo se reúnem para agarrar sua vida! Passei dias transidos, alheiados, cabisbaixos. Algum tempo depois, quando gostava de passeiar incógnita pelas ruas da cidade e ao regressar via na Praça do Cantagalo o espetáculo das casas horrendas no final da tarde – não podia acreditar que a libido e a sensualidade morassem naquelas casas horrendas. Por outro lado ficava na dúvida ao comparar as mulheres da zona com as da cidade. Ficava sem saber.Constatava que a considerada impura podia ser amável e até feliz, enquanto que a outra, presumivelmente pura, podia ser odiável e infeliz. Então, eu concluía, tanto faz tanto fez, o que não ganho aqui perderia lá, de qualquer maneira. ...página 18...: Ela sorria quando abriu a porta e acendeu a luz do quarto espaçoso e ricamente mobiliado. Estava segura de si, fechou a porta, desamarrou os cabelos, tirou os brincos e o colar. Ele ainda titubeava no alumbramento inesperado. Nunca experimentara algo parecido, emoção mais afortunada. Quem ela pensa que sou?: um criador de gado e dono de invernadas? Sou um pequeno agricultor, pouco mais que um pé rapado. Fico meio desconfiado: pois esmola demais não faz o cego desconfiar? Assim transido, o coração quase a saltar do peito, ele não sabia se prestava mais atenção nela, se dizia alguma coisa para assinalar presença. Ela está tirando a roupa?: é sinal que também tenho que tirar a minha! O que será que ela viu em mim, para me escolher no meio de tantos?... Ela tirava a roupa, peça por peça, os olhos dele não perdiam os movimentos dela –era como se uma pessoa estivesse a abrir uma mala repleta de jóias e debaixo de cada uma surgisse outra mais rara e valiosa – ele custava acreditar no que via. A sucessão de imagens nos olhos e nenhuma palavra na boca. Ela tem uns anéis miméticos, uns brincos de begônias cheirosas? Não está muito longe de mim mesmo quando se aproxima como agora? ...página 72...: Nos primeiros dias de zona meu corpo tornou-se uma escarradeira; e minha alma virou um bagaço. Todo mundo queria me conhecer, todos os homens queriam copular comigo. Chegavam a fazer fila no corredor, eu às vezes pulava a janela do quarto e ia esconder-me bem longe para descansar no meio das mulheres menos requisitadas, que faziam ponto nas sombras dos muros e dos becos. Morria de medo de contrair doença e de pegar filhos. Ensinaram-me que devia apertar com força o membro do freguês: se ele estrilasse é porque estava contaminado. Tomei horríveis garrafadas para inibir a concepção, tomava banhos intermináveis, esfregando-me com a bucha até quase dar no sangue, no esforço de extrair tudo o que pudesse ter ficado em mim, deles. Ganhava muito dinheiro, mas tinha que suportar aquele desfile de tipos nojentos, as caras obscenas, a nudez heterogênea, os pênis cheios de varizes. Abria as pernas, olhava pros lados ou pro teto, comia uma maçã, fantasiava o diabo para amenizar o bafo deles, o suor fedido, o gip-gip-nheco-nheco, a gemeção, o orgasmo escandaloso, o esporramento ignóbil. Aquilo era vida? ...página 155...: Também pudera que eu e o Tião sejamos assim como somos. O Cantagalo pesou em nossas consciências, amarrou a espontaneidade de nossas ações, inibiu a plena circulação dos nossos sentidos – devassava e publicava nossa intimidade, programava nossa vida, limitando-a como se nos aleijassem. Não sei o que acontece com as outras mulheres que saíram de lá, mas quanto a mim o apelo da mudança chegou de fora como o sol que entra na casa e transforma o cenário. O mesmo deve ter ocorrido ao Tião: o sol que atravessa a parede deve ter limpado as regiões de sombras de sua individualidade.Ele me pediu em casamento? Custo acreditar. Se fez isso é porque acredita, como eu, que a nossa saída do Canta representa uma promoção e não um rebaixamento. Se defronto na rua um ex-cliente da zona, não abaixo a cabeça na humildade nem a levanto no orgulho. Se estive lá por dez anos não foi por intrepidez ou ganância, não agi sozinha nem atraí ou seduzi ninguém. Fui uma profissional que prestava serviços contra-pagamento e nada mais. A angústia tem uma pergunta mais quente nos dias de frio: estou acaso desonrada em minha vida? Que atire a primeira pedra quem julgar que sim.