segunda-feira, fevereiro 20, 2006

O DIA DO CASAMENTO (*)

Fragmentos do Romance inédito.

Página 27: Os dois no silêncio, como se não fossem casados e sim adúlteros de outros casamentos. O melhor fica para depois, na silenciosa veemência do olhar de cada um. Ela ria diante do pé de laranja do terreiro? Para a fruta ou para ele? O sorriso conjunto da pele e das vísceras, o brilho conjunto dos dentes, dos olhos, da aura, o alegre esvoaçar dos pensamentos (a licença poética de uma pausa atrevida) nos músculos da face, nas fibras e carnações, na ossatura e no sangue: é o convite para a festa de logo mais? ou já é a própria festa, licenciosa? Dir-se-ia que o corpo como um todo é um sorriso iluminado, a iluminar. Página 46 (dos originais): Não barre o caminho da alma (entre bromélias e barba de velho), só ela sabe onde vai, não aborreça a natureza, entrando e saindo dela, sem reverenciar seus altares... O amor tem a linguagem dos signos, o que diz fica subentendido, a rampa é tortuosa, a lua é um pão frio e duro, mas o silêncio bem tocado é música... de vez em quando é bom avançar um pouco no que ainda não foi lembrado nem intuído, avançar no escuro das hipóteses, adivinhar o romance controverso, arriscar a parábola esdrúxula...., mentir um par de verdades: quem sabe encontramos a claridade na escuridão do vazio?, ou alguma palavra que não precisa ser dita nem escrita para ser amada? algum sinal do novo entendimento? algum rútilo valor até hoje escondido no bojo da velha sabedoria? algo melhor para os lábios que as palavras: os beijos?! Às vezes as vozes dos outros são melhores, às vezes são como toras jogadas nas tábuas e nas folhas de zinco: riçam nas pedras... mas o coração da esposa não bate amor nem poesia: bate ira (ele pensava)..., bate ódio, ele pensava. bate ...: o quê mesmo? (página 54, dos originais): Assim foi, pois, depois da zanga recíproca na noite do casamento: depois de dias e semanas a remoerem reciprocamente a zanga inflamada, eles voltaram atrás na beleza dos olhares: - ele percebeu que ela era mais do que parecia, estava muito além do que tinha e carregava (tinha e carregava a hora cheia de coisas e as misteriosas citações do olhar).... Ela percebeu que o rosto dele mudava de feições (obscurecia e esclarecia, esclarecia e obscurecia) a toda hora e que as palavras não ditas subiam e desciam na garganta, a todo instante. A luz, se tem reflexos, tem sombras. Mas o silêncio chamava de dentro – e eles entendiam e atendiam! O inefável é uma medida de economia, não custa nada e pode ser debulhado na meditação, encher outras medidas até entornar para fora dos sonhos. Estamos mais juntos quando estamos separados, ó Tristão, ó Isolda!, isso não é lindo como a roseira na vinha entrelaçada? Quem se devota à literatura arrepende, arrepende sim..., mas tardiamente..., depois de se deixar apaixonar. Os olhos fixos na graça da encenação : toda nudez pressupõe a penumbra rosada ... mesmo no escuro o par de coxas sublimes é visível! O impulso fica mais em cima o coração do amor fica no meio fica no meio da alma e no meio do corpo.

(*) Estória dos cônjuges que brigaram na noite do casamento e nunca fizeram as pazes. Estiveram casados por mais de três décadas, tiveram uma porção de filhos – e nunca trocaram uma palavra sequer.