DOIS LIVROS DE POESIA INÉDITA
1 – A JANELA DOS ANOS ...página 7...: Os Vazios Cintilantes Falta luz ou falta quem acende a luz? é o Padre Zezinho, respondedor, que pergunta a própria realidade estremece acende e apaga nas vielas, quer saber se falta quem sonha ou se faltam os sonhos no coração. Ainda subsiste em nós os resíduos da divindade? onde? nos bolsos desaparecidos do corpo? nas pálidas reflexões da alma? o passado avança no futuro – os ritos africanos viraram feitiços no Brasil? a própria fé a serviço da violência em toda parte? a nau dos insensatos! o ergástulo dos excluídos! a dessacralização da natureza! é assim que se perde sem ver o amor convivial? Vamos fazer dos olhos uma arma? cantemos em voz baixa a metáfora dos vazios cintilantes – não temos noites a perder no derrame de insetos – a vida é uma criança: gosta mas tem medo. ...página 81...: A Ocultação do Cadáver Ele (movido por ciúme doentio) tirou a vida (tirou de onde não deveria estar?) do suposto (o ciúme a quanto obriga!) amante de sua amada (um Iago discreto porém solícito, que lançava olhares na direção dela para acicatá-lo). Ele deu dois tiros (pá!pá!) à queima-roupa bem ali no meio da rua, no meio da cara do rival – mas ninguém viu (o dia ainda não amanhecera? ninguém vivia naquela hora?). Assim ele teve pouco trabalho de arrastar nas sombras o corpo abstrato do presumível desafeto (e agora não sabe o que fazer com ele: esconde na moita? expõe à luz do sol?). É assim que ele esconde o poema (para protegê-lo do malogro ou da intempérie?, dos dias e lugares ferinos?), a projetar nele o que, irrevelado, já é saudoso.
2 - POEMAS E PARÁFRASES
Epígrafe de John Dryden: “a paráfrase é a tradução como latitude, em que o autor é mantido ao alcance de nossos olhos...., porém suas palavras não são seguidas tão estritamente quanto seu sentido, que também pode ser alterado”
1 – Num Canteiro de Flores (*)
Esse lugar aí onde repousas
a dois passos do bosque escuro
onde o verde vivo da serpente assustada
é ouro vivo nas mãos da fada.
As trilhas que a alma segue à luz pendente
o pássaro arcáico das quimeras
tantos enfeites no chão trançado de sombras
Esse lugar sagrado, onde repousas
tornou-se mais belo com o tempo
que até sofro em presumir, ái de mim!
que alguma parte de teu apaixonado ser
ficou infiel a mim aí
nesse lugar debaixo da relva, onde repousas.
Ou será que não estás mais aí e sim
num lugar distante, e já me esqueceu?
ou alguém ao lado de teu coração te afagas aí?
e então?, por Deus, e então?
Uma sombra de folha beija teus lábios?
o raio de sol que penetra o seio da terra
aquece teus pés e tuas mãos,
mantém em serenidade teus meigos caprichos?
Os brincos de flores silvestres e o pálio
de auras e aragens e aromas bafejam o cordel
de teus meigos anseios?
Ou será que outro rapaz tomou aí a teu lado
o meu lugar e ama-te aí mais do que eu aqui?
Aí embaixo (como vou saber?) o intrometido
não estará a enredá-la de palavras afetivas
mais plausíveis do que as minhas?
Pobre de mim aqui, a pensar feridas e tristezas
aqui neste lugar de sombras onde estou,
sob o qual docemente repousas.
As luzes que minha alma procura
estão nos olhos agora cerrados,
estão definitivamente lacrados
nesse lugar aí debaixo da relva?
As abstrações ardentes de teu corpo imortal
ornaram as paredes do jazigo, dilatando-as,
e a orquídea que espelha a tua imagem
pode conceber outra fé em teu amor?
e a brisa primaveril que vem do rio
pode arrebatar, parte por parte, minha lembrança
em teu meigo afeto?
Ah, esse lugar aí debaixo da relva!
há muito ficou mais belo e afortunado,
tanto que agora me faz pensar, ái de mim,
que alguma parte de teu apaixonado ser
me ficou infiel aí
nesse lugar onde repousas.
(*) Paráfrase de um texto de Marie de France (1154-11898), citado por Will Durant, em História da Civilização (12 volumes), traduzido em prosa por Monteiro Lobato, edição da Companhia editora Nacional, SP, 1955.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home