quarta-feira, fevereiro 22, 2006

DOIS LIVROS DE POESIA INÉDITA

1 – A JANELA DOS ANOS ...página 7...: Os Vazios Cintilantes Falta luz ou falta quem acende a luz? é o Padre Zezinho, respondedor, que pergunta a própria realidade estremece acende e apaga nas vielas, quer saber se falta quem sonha ou se faltam os sonhos no coração. Ainda subsiste em nós os resíduos da divindade? onde? nos bolsos desaparecidos do corpo? nas pálidas reflexões da alma? o passado avança no futuro – os ritos africanos viraram feitiços no Brasil? a própria fé a serviço da violência em toda parte? a nau dos insensatos! o ergástulo dos excluídos! a dessacralização da natureza! é assim que se perde sem ver o amor convivial? Vamos fazer dos olhos uma arma? cantemos em voz baixa a metáfora dos vazios cintilantes – não temos noites a perder no derrame de insetos – a vida é uma criança: gosta mas tem medo. ...página 81...: A Ocultação do Cadáver Ele (movido por ciúme doentio) tirou a vida (tirou de onde não deveria estar?) do suposto (o ciúme a quanto obriga!) amante de sua amada (um Iago discreto porém solícito, que lançava olhares na direção dela para acicatá-lo). Ele deu dois tiros (pá!pá!) à queima-roupa bem ali no meio da rua, no meio da cara do rival – mas ninguém viu (o dia ainda não amanhecera? ninguém vivia naquela hora?). Assim ele teve pouco trabalho de arrastar nas sombras o corpo abstrato do presumível desafeto (e agora não sabe o que fazer com ele: esconde na moita? expõe à luz do sol?). É assim que ele esconde o poema (para protegê-lo do malogro ou da intempérie?, dos dias e lugares ferinos?), a projetar nele o que, irrevelado, já é saudoso. 

2 - POEMAS E PARÁFRASES Epígrafe de John Dryden: “a paráfrase é a tradução como latitude, em que o autor é mantido ao alcance de nossos olhos...., porém suas palavras não são seguidas tão estritamente quanto seu sentido, que também pode ser alterado” 1 – Num Canteiro de Flores (*) Esse lugar aí onde repousas a dois passos do bosque escuro onde o verde vivo da serpente assustada é ouro vivo nas mãos da fada. As trilhas que a alma segue à luz pendente o pássaro arcáico das quimeras tantos enfeites no chão trançado de sombras Esse lugar sagrado, onde repousas tornou-se mais belo com o tempo que até sofro em presumir, ái de mim! que alguma parte de teu apaixonado ser ficou infiel a mim aí nesse lugar debaixo da relva, onde repousas. Ou será que não estás mais aí e sim num lugar distante, e já me esqueceu? ou alguém ao lado de teu coração te afagas aí? e então?, por Deus, e então? Uma sombra de folha beija teus lábios? o raio de sol que penetra o seio da terra aquece teus pés e tuas mãos, mantém em serenidade teus meigos caprichos? Os brincos de flores silvestres e o pálio de auras e aragens e aromas bafejam o cordel de teus meigos anseios? Ou será que outro rapaz tomou aí a teu lado o meu lugar e ama-te aí mais do que eu aqui? Aí embaixo (como vou saber?) o intrometido não estará a enredá-la de palavras afetivas mais plausíveis do que as minhas? Pobre de mim aqui, a pensar feridas e tristezas aqui neste lugar de sombras onde estou, sob o qual docemente repousas. As luzes que minha alma procura estão nos olhos agora cerrados, estão definitivamente lacrados nesse lugar aí debaixo da relva? As abstrações ardentes de teu corpo imortal ornaram as paredes do jazigo, dilatando-as, e a orquídea que espelha a tua imagem pode conceber outra fé em teu amor? e a brisa primaveril que vem do rio pode arrebatar, parte por parte, minha lembrança em teu meigo afeto? Ah, esse lugar aí debaixo da relva! há muito ficou mais belo e afortunado, tanto que agora me faz pensar, ái de mim, que alguma parte de teu apaixonado ser me ficou infiel aí nesse lugar onde repousas.

(*) Paráfrase de um texto de Marie de France (1154-11898), citado por Will Durant, em História da Civilização (12 volumes), traduzido em prosa por Monteiro Lobato, edição da Companhia editora Nacional, SP, 1955.