domingo, março 12, 2006

APENAS UM CORAÇÃO SOLITÁRIO (*) - Romance

Fragmento 

Páginas 168 e 169: Nem mesmo o celibatário mais convicto poderia imaginar em sua duradoura solidão uma vila de solteiros como a nossa repleta de jagunços na rua, canoeiros no rio sucuris e jibóias na praia de baixo surubins e jacarés a boiar nos remansos... Custo acreditar no que vejo: uma coletividade (não diria um meio social) sem famílias administradoras da ordem, desprovida do choro das crianças, das cantigas das mulheres: mesmo o leitor custa acreditar, não? As setas submersas do sol, como diria Marianne Moore são os peixes vivos do Paranaíba na líquida vidraça de seus deslisamentos em finquetes e estirões de guelras e barbatanas em formas de lambaris bagres pacus traíras... A cachoeira na meia-cabeceira, na embocadura de outras águas mais chuvosas, manda suas pétalas e espumas aos chefes das obras que esburacam e entopem aqui e ali e acolá, que só merecem dos candangos pensamentos em forma de pedras nas mãos e palavrões cabeludos nas bocas, tal é a raiva do ódio deles, quando o dia vai morrendo nas nuvens do pó das pedras. A cachoeira a tossir e espirrar as perfeitas girafas do arco-íris as asas molhadas das miragens, e depois de toda azáfama desconstrutivista vem a golfada de bolhas douradas (uma criancice de fim de semana?), a descansativa serenidade de um raríssimo domingo. O que eu menos esperava, acabou acontecendo. Vieram dizer-me no quarto, onde eu relia trechos do Apocalipse, que tinha um casal lá fora querendo falar comigo. Pensei que fosse gozação. Um casal, ou seja, um homem e uma mulher lá fora? Onde já se viu um homem de juízo conduzir uma mulher direita por zona tão desregrada? Por mais boba que fosse, nenhuma mulher seria doida de andar naqueles becos e ruas habitados por mais de mil tarados.... Fiquei bobo quando revi o velho Demétrio e a sempre remoçada Eponina, ele a gaguejar, ela vermelha de vergonha. Os dois chegaram justamente na hora que os moradores tinham voltado do trabalho e estavam à vontade, completamente pelados no calor do veranículo de ano inteiro do lugar. O Demétrio, mesmo no acinzentado do crepúsculo, tingia os olhos e o rosto de enrugada vermelhidão; a Eponina, engasgada na passividade, não sabia onde pôr os olhos, as mãos, os pés.”Você mora numa colônia de nudismo?” um e outro queriam perguntar, mas não perguntavam. Eu, que devia estar mais constrangido, não estava. Quem mandou eles andarem pelo mundo, procurando o que não perderam? 

(*) Com este romance o autor fecha a Tetralogia do Cinéfilo”, constituída na ordem consecutiva dos outros já mencionados neste blog, ou seja: “Monólogo e Pranto”, “Por Que Choras, Saxofone?”, “Barra Funda – a Evaporação dos Paradigmas”. Sendo que o segundo e o terceiro foram redigidos em versos livres e os demais numa escritura mesclada de prosa e verso, com a ressalva, necessária no caso, de que tal recurso não fere a hegemonia convencional dos poemas da poesia, uma vez que a intenção foi de procurar uma forma narrativa mais despojada e sintética, uma versiprosa quem sabe mais fluídica e legível.