quinta-feira, março 02, 2006

ONDULADO - GRÃOS DE PÓLEN E PICLES DIETÉTICOS

Fragmentos: 

- Mãe West costumava dizer que quando era boa, era muito boa; mas quando era má, era melhor ainda. - O nosso País já pagou os pecados da matança dos índios e dos africanos? Quando purgar o morticínio, tim-tim-por-tim-tim, aí sim poderá ser feliz. Antes não. - O mundo tem seus ocos escuros, seus espinheiros luzidios, suas paredes e tampas, e ainda assim chove dentro. - Na conhecida e amistosa tarde rural eu sentia a respiração das árvores que me acompanhavam na beira da estrada. - Sim, penso que consegui aprisionar nos meus os olhos dela. Estão aqui guardados, retinados, disponíveis para novos olhares. Mas até quando conseguirei segurar o brilho deles, tendo no meio tanta neblina, tanta distância? - Primeiro é preciso amar a si mesmo, depois os outros seres e as coisas. Isto não é ser egoísta, é ter um ponto de vista e outros de apoio. - As crianças são responsáveis, inocentemente responsáveis pela lembrança de Deus no homem, e do céu na terra. - O céu prenhe de chuvas a prometer o reconforto das primícias, as renovadas searas da natureza, os cachos de cocos e de bananas, os pendões de milho, os espinhos de benzinho: uma verdadeira feira de amostras a céu aberto. - Deus, em seu poder sobre todas as coisas, pode ser solteiro ou viúvo, mas enquanto criador de todas as coisas era casado e bem casado. Algum celibatário convicto é que escondeu o nome da Deusa. - As palavras não são apenas palavras, as coisas não são apenas coisas. Há uma inteligência ou uma sensibilidade, envolventes. - As ações melancólicas dos que não se arriscam, não sobem nas árvores nem caem nas águas,dos que recebem de mãos beijadas a honestidade dos outros. - Os filmes de amor geralmente exageram na dose romântica. E o espectador, quase sempre, quase ou a chorar, ouve a própria voz dizer: ora essa, quê mentirada! - O cara que disse: quem faz sacanagem comigo faz uma vez só, vivia de mal com quase toda a população da cidade. - O que há em comum entre o escritor e o relógio é que ambos são imprecisos e trabalham de graça. - Nunca mais levou desaforo para casa, depois que descobriu o caminho do bar. - A imaturidade da mulher é biológica, diz o machista: dos seus 100 mil óvulos, apenas 450 amadurecem. - O atacante tinha o pé tão torto que não acertava nem a linha de fundo do campo. - Escrevia à máquina porque não sabia o alfabeto de cor. A idade média dos favelados continua sendo a idade das trevas. - Deus foi sábio e justo (diz o biógrafo) em fazer o escritor Carlyle casar-se com a Sra. Carlyle. Assim, em vez de fazer quatro pessoas infelizes, fez apenas duas. - Sou a favor da sobrevivência dos corruptos,talvez dissesse Rui Barbosa, hoje. Pois certamente não suportaria viver sozinho neste mundo. - Segundo Ezra Pound, quem fez a primeira cadeira foi um inventor; quem fez a segunda, um mestre. E quem sentou na terceira não passava de um diluidor. - No mundo dos espetáculos, sempre que uma estrela cai, um astro cai em cima. Beaumarchais, quando disse que o que é muito tolo para ser dito pode ser cantado, estava apenas profetizando o surto dessa barulheira que os jovens eufemistas chamam de som legal. - Na corrida dos cromossomos, o prêmio é o descanso de nove meses para o vencedor. - O celibatário é polígamo. Não tendo uma mulher, tem todas. - O verso livre é a linguagem franqueada de toda regularidade rítmica (logo, uma prosa), como quer Roger Caillois? Meu Deus, a própria prosa precisa ter lá seu ritmo, também. Fora do ritmo não existe vida contínua, nenhuma arte. - De fome e sede morria o rei no pomar e no jardim onde abundavam as águas das frutas e as frutas das águas...:assim morro eu de impotência e ignorância ao pé das estantes dos livros da sabedoria humana, tão belamente armazenados? - A cena no albergue, de mantear Sancho Pancho, é de tal maneira de matar de rir e de viver de chorar, que se repete em mais de 500 páginas na lembrança do leitor do fabuloso “Dom Quixote”, de Cervantes. - O uso do cachimbo faz a boca porca? - Ela é linda de morrer. Os agonizantes dizem da morte. - Quando São Pedro arrasta as cadeiras no céu, os desabrigados da terra dançam. - Para avaliar o peso de suas obra, o escritor pesava as folhas antes de escrever e tornava a pesar depois de escritas. - Esse cara é normal, dizem. Mas ele manca das duas pernas. - Que o sexo é sobretudo uma fonte de prazer, o próprio estudo da biologia prova: os seres que mais procriam são os assexuados. - Sujeito amarrado pro rabo tava ali. Por mais que se batesse na cangalha, o burro não entendia. - A fome era tanta que enquanto as aranhas enrolavam teias em sua garganta, lá mais dentro as tripas maiores comiam as menores. - Prometeu ria da própria desgraça. Acorrentado ao penhasco, os abutres vinham a toda hora fazer-lhe cócegas no fígado exposto. - Tinha o ar hipócrita de um pai que sempre espancava os filhos e que jamais tinha comido cadeira por isso. - Para provar sua tese de impraticabilidade do onanismo entre os pássaros, o ornitólogo, no viveiro, disse: “uma andorinha só não faz, verão.” - As coisas e seres que adoecem e fenecem precocemente: o que lhes rouba o vigor, assim precocemente? - O Novo Mundo ficou velho, ou seja, morreu (de morte matada, com um tiro no coração) no dia em que foi descoberto pelos caçadores de cabeças do Velho Mundo. Assim falava Claude Lévi-Strauss. - Oposicionista chapa-branca é um oportunista que não se manca? - Drummond parecia viver no fundo das coisas, de onde via as superfícies do lado de cima e do lado de baixo. Assim ele continuava em Minas (onde talvez estivesse morto, ou seja, estivesse a viver de outra forma), estando no Rio (onde desenvolvia a ilusão do migrante, julgando que tinha ido, pensando que tinha ficado). Vivia em muitas dimensões: o coração numeroso a recalcar os climas do nível das nuvens e do nível dos mares, o cérebro dinâmico a receber e expedir as mensagens dos sentidos continuamente despertos, em palavras carregadas de luz e energia. - A palavra idiossincrasia é gráfica e foneticamente antipática e serve para definir o temperamento individual em relação principalmente a certas influências incompatíveis. Lembro-me dela toda vez que ouço e vejo as menções e imagens de “reis” fajutos como Pelé e Roberto Carlos, que folclorizam no sentido mais risível as noções de exemplaridade humana. - Tantas vezes o cântaro vai à fonte, que um dia cantará. - Uma pergunta talvez cretina: as fraudes, falcatruas, roubalheiras e outros sinônimos da desgraceira nacional ocorrem paulatinamente num certa ordem de preferência dos agentes ou é a imprensa que programa a divulgação para evitar o congestionamento e dar uma certa ordem no cáos? - O desejo é melhor do que o orgasmo, diz a psicóloga Lídia Aranty, - pois aquele perdura no tempo e na intensidade, enquanto este é limitado no tempo e na intensidade. A diferença entre os dois (ela acrescenta) está entre o não vivido (onde cabe tudo) e o vivido (onde cabe do melhor e do pior, mas só cabe o que cabe). - A arte é ambígua, o amor é ambíguo. Se não fossem, o que seriam? Batatas digeridas ou não, antes ou depois jogadas ao lixo? - Scarlett O’Hara, uma criatura de ficção (do romance O Vento Levou), de repente passa a viver em vários corpos maravilhosos, propensos a encarná-la no filme de King Vidor: Joan Fontaine, Paulette Goddard, Jean Arthur, Joan Bennett e Vivien Leigh (que acabou arrebatando o papel). Foi, até hoje, a personagem de ficção mais feliz do mundo? - Leonard Boff, o da teologia da libertação, acha que o céu (a felicidade), o purgatório (a dor) e o inferno (a crueldade) começam na terra – e porisso acha que a Igreja devia ocupar-se mais da terra do que dos outros espaços. - Inscrição de Malraux nas casas de cultura francesas: “Ao mesmo tempo instituição e contestação de toda instituição, a Casa de Cultura traz dentro de si a contradição, isto é, o movimento e a vida”. - O poeta, este ser intemporal contemporâneo do passado do presente do futuro conterrâneo de Demócrito de Jesus de si mesmo. - Mary, uma das amadas de Bill (era assim que Shakespeare era conhecido em sua pequena cidade inglesa do século 17) ficava estupefata com a ambigüidade do poeta. Voluntarioso e despreendido, ele chegava ao ponto de oferecer a ela sua vida, mas depois passava dias sem procurá-la nem mesmo para um simples cumprimento. Sendo um freguês de caderno da cultura pré-cristã (greco-romana), citava, muito à vontade, o provérbio bíblico: “Assim como na água o rosto responde ao rosto, o coração humano responde ao coração humano”. - Mesmo quando o impulso sexual empalidece ou fenece, a libido continua a se manifestar no homem, através da energia mental. Não é assim que Jung queria corrigir Freud? - As aventuras zoológicas e botânicas dos naturalistas Spix e Martius, em 1818 a 1820, no solo brasileiro, são comparáveis às aventuras literárias dos grandes poetas que procuraram e encontraram as maravilhas de uma floresta virgem não só do planeta como da alma humana. - A pesquisa e o estudo da genealogia são fascinantes. Nunca chegam ao fim. Uma vida sucedendo à outra nas linhas descendentes e ascendentes e colaterais. E aí vem o rol das inferências e dos conhecimentos: a semelhança clara ou obscura dos semblantes, a afinação dos gostos estéticos, as provisões dos instintos. É o sangue correndo na humanidade através do tempo e da geografia, as individualidades crescendo e multiplicando e se transformando em sociedades. - O escritor escrevia tão mal que o digitador, mesmo zangado, bocejava. - O poeta é um fracassado no mundo real? Na verdade, diz Ernest Kris, ele cria mundos e não apenas entra em devaneios. A fantasia é o contorno da infelicidade, já dizia Freud. A ficção, por outro lado, é a realidade remodelada. - De que é feito afinal a mente de um traficante de drogas? Um corredor polonês com os cascavéis em bote de ambos os lados? - Balzac é um mestre na arte de contar histórias. Suas páginas voam em nossas mãos. Mas de vez em quando ele pára a narrativa para jogar pérolas em nossas mãos. Como a que está no romance “O Pai Goriot”: “quando me tornei pai, compreendi Deus. Ele está inteiro em toda parte, pois a criação saiu dele. Assim sou em relação às minhas filhas. A única diferença é que eu amo mais minhas filhas do que Deus ama o mundo, porque o mundo não é tão belo como Deus e minhas filhas são mais belas do que eu”. - A luz elétrica das cidades ofusca o luar, que uns não conhecem e outros não se lembram mais dele. Mas a sabedoria oriental ensina que devemos ouvir a voz das árvores mesmo quando não há vento. - A exclusão social do verdadeiro artista e do verdadeiro intelectual se dá principalmente quando a mídia transforma a arte e a cultura em folclore entre aspas, ou seja, numa mediocridade ao alcance de todos. Os inocentes úteis dessa folclorização frequentam à exaustão os meios de comunicação da imprensa falada, escrita e televisiva. Com o tempo, todos passarão, é claro. Mas a fábrica desses ídolos de barro não cansa de produzir aberrações. - Depois que Deus ilumina para todos e o sol se põe, cada um tem que acender a própria lamparina. - O comunismos morreu mas não foi o capitalismo quem o matou: morreu envenenado nos próprios erros.Como o capitalismo poderia matá-lo à luz do dia, se vive nas trevas do aquém-túmulo? - A honestidade é um terapia, Freud dizia. E acrescentava: “o tratamento psicanalítico está fundado na honestidade”. Machado de Assis também acreditava que a honestidade é até mais importante do que a felicidade. - A mídia é um pau mandado do poderio econômico, e como todo pau mandado, dói na cabeça dos mais fracos. - Schopenhauer execra os pretensos donos da vida, para os quais nada vale além do que deixam valer. O que eles ignoram, não existe. Não é mesmo um desaforo, tamanha mistificação? Mesmo alguns filhos mórbidos da vida seguem pensando que o que ninguém (ainda) sabe, não existe.De minha parte estou cansado de saber que mesmo o que ainda não nasceu, já existe. - Debbie Reynolds nunca desfez seu ar de ingênua, seu espírito de corpo romântico? Perdeu o marido para Elizabeth Taylor e depois a filha para os narcóticos. Sofreu sem merecer, ela que soprava o fogo da apatia de uns e o fogo da paixão de outros. Doce pássaro da juventude, não merecia envelhecer assim desenganada, não é mesmo? - O filmusical da Metro nas décadas de 40 e 50 dava corda aos relógios do coração, dava asas aos seres humanos, pernas e braços às montanhas, aos campos e florestas. A musicalidade brotava em toda parte como as águas cristalinas do território de Minas Gerais antes do desmatamento.