OS NUMES TUTELARES
Fragmentos:
1: - Um Indivíduo Chamado Karl Marx (1818-1883), (*).
O indivíduo chamado Karl Marx desdobra a unha da fome
no mapa-mundi riscado no caruncho dos séculos
franze a testa, coça a cabeça, esfrega os olhos:
ar puro no sul se há guerra no norte?
O desespero não cheira bem
as ciências humanas nasceram na Alemanha?
o que mais?
uma certa antipatia racial também?
ele nada tem a ver com a vida dos outros
mas não sabe viver sem a vida dos outros
queima as pestanas nas velas e lampiões
lê e escreve dias-meses-anos a fio
sente que o texto só brilha se o contexto enraíza.
O amor pessoal da namorada
empalidece na presença do amor social dos desamados
não consegue dormir sem antes fazer as pazes
com os deserdados da sorte, os excluídos da ceia.
A revolução russa tinha mesmo que fracassar?
começou mal, foi de mal a pior?
sofreu o azar de passar nas mãos peludas de Stálin?
brincou de rato e gato quando não era um nem outro?
queria ir muito depressa em cima do andor?
alguém errou mesmo ou ao contrário todo poder político
nunca presta mesmo
e todo êxito dele é fugaz?
É triste mas é verdade
o povo continua propenso e vulnerável
ignorante do passado e do futuro
medíocre pusilânime reles comedor de feijão bichado:
em vez de afugentar,atrái a repressão das chefaturas
(é isso mesmo ou estou decepcionado e exagerando?)
...nem toda sociedade vem com o milho
...nem todo individuo vai com o fubá:
não há salvação à vista? o que há
é a erosão das simpatias e da credibilidade.
A aurora rompe, os cavalos fremem, diz Mefistófeles,
desesperado.
As nuvens abençoam os cumes de granito de nossa
Barra funda
os planaltos ondulados do tórax e do cérebro
espantam os presságios: estamos no interior de Minas Gerais,
bem longe dos conflitos sociais, mas
as portas fechadas ficam mais fechadas,
quando uma delas é arrombada...
O oprimido, coitado, quanto mais se abaixa
mais oferece a bunda ao poderoso, diz o Grisaldo,
a molestar e divertir na república dos funcionários
...”as ideologias de dominação social da classe dirigente
são atarraxadas a ouro e pólvora”- agora quem fala é o Aleixo,
a comer bolachas no alpendre da república.
O misticismo oriental perdura na física e na química,
transige da meditação deles para a ação nossa,
é o que acaba dizendo Flávio, o topógrafo das obras.
O herdeiro mental da velha linhagem dos rabinos
está agora a passeiar nos vinhedos de Trier,
seu pensamento a fabricar aforismos e metáforas
a paixão que brilha na esperança
a galgar ladeiras oblíquas por estreitos atalhos
a saltar arroios despejados de fendas rochosas:
até as pedras arranjam, polimorfas, os sorrisos.
Assim ele revisa os utópicos Fourier e Saint-Simon,
muita água a passar debaixo da ponte, ao lado
de intrincadas rampas, compactas texturas
as palpitações do peito freiam os ímpetos
e dentro da água a luz foge da treva:
o carro capitalista chega ao precipício?
a locomotiva comunista já despenhou?
os nômades na verdade são fugitivos?
se não são,o que estão procurando?
Não posso cair na tentação do pensamento abstrato,
ele diz às uvas e às sombras da tarde:
minha tarefa é fazer história e não meramente
interpretá-la!
Deus sabe como e não me conta?
A filha Eleanor escreveu antes de suicidar-se:
“como tem sido triste a nossa vida nestes anos...”.
A família só não morria de fome
porque Engels era amigo e repartia com ela
o salário de seu emprego na indústria inglesa.
Quando a mãe morreu,ele voltou à Trier,
de lá escreve a já muito doente Jenny,
confessa estar indo todo dia à velha casa,
onde ela viveu em solteira,bonita e rosada:
a casa o atrái mais do que as ruínas romanas,
foi nela que morou seu grande amor:
a moça mais linda de Trier!,
a princesa da cidade, a rainha dos bailes
o brilhar nos olhos, o frescor nos lábios
o jardim que a circundava:
onde ela ia, ele lá estava.
O prazer tem arranjos complicados
joga pela janelas as árias operísticas
(as coivaras verdes não pegam fogo)
pelo sim pelo não é assim o coração
se estivesse a morrer, estaria a cantar:
ela nadava a dormir sobre as ondas?
os olhos trocavam de cores?
e ele? também dormia sobre as ondas?
escolhia então as cenas de contos de outros autores?
e agora, Carlos?
e agora, longe do passado e da perspectiva do futuro?
e agora é até bom que na esteja a ver o que acontece:
a sociedade adotou de vez o fascismo de tantos nomes
terríveis?
As pessoas em geral (é bom que ele não veja) ,
quando não estão contando vantagens
ou misérias
estão engolindo umas às outras?
até quando?
(*) Texto transcrito do romance em versos (inédito) BARRA FUNDA – A Evaporação dos Paradigmas.
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