sexta-feira, março 10, 2006

ENTREVISTA INÉDITA PARA PUC MINAS

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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 
Programa de Pós-Graduação em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa. 

Entrevistado: Lázaro Barreto. Entrevistador: Maurício J. de Faria, em 09/09/1999. 

Pergunta: Como você começou a se interessar por literatura? 
Resposta: Na leitura de um livro escolar chamado “Manuscrito”, na década de 40, que continha cartas enigmáticas, trava-línguas, parlendas, trovas populares e em textos como “A Última Corrida de Touros em Salvaterra”, de autor esquecido, “Meus Oito Anos”, de Casemiro de Abreu e “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Foi neles que percebi que a vida real e vivida tinha uma continuação, um adendo enriquecedor, na vida imaginada, possibilitando assim o processo de recriação e a talvez equivalência de um poema com um feixe de lenha ou uma espiga de milho. 

Pergunta: Cada escritor tem um jeito muito particular de escrever. Qual é o seu? 
Resposta: Todo mundo que escreve (seja escriturário, escrivão, escritor) precisa munir-se antecipadamente de papel, esferográfica, mesa, cadeira (e depois, se puder, de uma máquina de escrever ou de um computador). Até aí o tal jeito particular não aparece, pois ele é mais abstrato e pré-existe ao ato físico de escrever. De minha parte, costumo abrir as gavetinhas da memória, tirar os dados antigos, ainda fresquinhos, e misturá-los com os fiapos de impressões e conversas obtidas recentemente, andando nas ruas e conversando com as pessoas. Só assim, com parte do material nas mãos e na cabeça, é que vou esboçar e escrever o texto que, depois, pode apresentar um resultado que nada tenha a ver com o material reunido, a não ser o impulso do começo. 

Pergunta: Em que você se baseia para escrever os seus textos? 
Resposta: Dois substantivos, Vida e Mundo, atrelam todas as outras categorias gramaticais no cordel de mão dupla: da diversidade e da unidade. Se o espírito está pronto, o próprio corpo paira sobre as águas. 

Pergunta: E a leitura? Quando você começou a se interessar por ela? Em que idade? Em que circunstâncias? 
Resposta: O interesse mais agudo pela leitura veio depois da alfabetização, é claro. Aí um autor levava a outro: Gonçalves Dias depois Bocage, depois Dostoievski, depois Drummond e o grande elenco dos modernistas brasileiros, com posteriores e instigantes recuos aos clássicos (Goethe, Cervantes, Shakespeare, Keats, Machado de Assis, Flaubert, Tolstoi etc). O pico do interesse foi na juventude, numa espécie de exílio que eu então vivia no nordeste de Minas, trabalhando num canteiro de obras de construção da primeira grande usina hidréletrica do Estado, nos anos 50. Para fugir da existência meramente vegetativa a que estava condenado, eu, além de trabalhar doze horas por dia, comecei a ler, ler e ler. E o que é bom sempre acaba viciando: depois de Faulkner você fica ansioso por conhecer a obra de Thomas Mann e depois a de Manuel Bandeira, de João Cabral, de Clarice Lispector, de Fernando Pessoa etc. 

Pergunta: Você costuma estudar e/ou pesquisar muito antes de escrever? 
Resposta: Sou formado em Ciências Sociais e já escrevi alguns livros de histórias municipais e de cultura popular e até de genealogia. Nesse caso a pesquisa (tanto a de campo como a bibliográfica) é fundamental, imprescindível. Mas na parte literária, que é a minha preferida, a pesquisa é mais introspectiva, a gente não precisa ir longe, pois tudo que é humano pode afluir numa só vida e tudo que é mundano costuma condensar-se no lugar em que estamos vivendo. 

Pergunta: Qual é o papel do escritor nos dias de hoje? Fazer um resgate da história? Resgatar uma tradição de narrativa oral? 
Resposta: Dar um bom (justo e saudável) testemunho de seu tempo. E, se for possível, priorizar em seu trabalho os valores edificantes da humanidade, como o respeito pela biodiversidade planetária e a prevalência dos valores da poesia (da piedade) sobre os da política (da violência). Uma ressalva, porém. Quando disse edificante não quis dizer pasteurização nem mistificação. Quero dizer o que é belo simplesmente por ser verdadeiro – e que merece um tratamento condigno, ou seja, igualmente belo e verdadeiro. 

Pergunta: Como você definiria o ato de escrever? 
Resposta: Um exercício gráfico de incontáveis consequências anímicas. Da página em branco pode brotar uma lei moral, uma condenação judicial, uma carta de amor, um aviso fúnebre, uma letra de música, uma quitação final, o testamento de um moribundo, uma composição infantil. Na CEMIG, onde trabalhei durante 30 anos, havia uma recomendação metodológica de trabalho no escritório: “Não fale, escreva”. 

Pergunta: Qual é o seu principal objetivo, ao escrever? 
Resposta: exorcisar os demônios do corpo e da alma? Entoar cânticos jubilosos ao Criador? Sei lá. Só sei que não saberia viver se não dispusesse de uma folha de papel e de uma esferográfica a meu alcance, constantemente. Escrevo também para manter acesa a pequena e humilde vela que ao menos precariamente esclarece os embargos, os transes, as incursões e as regressões de nossa vida. 

Pergunta: O que você sente quando está escrevendo? 
Resposta: Uma grande tensão. A vontade de que as palavras necessárias não deixem de pousar em minhas mãos, depois de fazerem uma pausa no cérebro e no coração. E também a insatisfação mesclada com a esperança de que na próxima vez estarei mais apto e serei mais feliz. 

Pergunta: Por que você escreve? A família participa do processo de criação? Como se dá esta participação? 
Resposta: Porque? Porquê deveria estar fazendo mesmo alguma coisa, não? Um amigo justificava a razão pela qual plantava árvores que levariam décadas para frutificar, sabendo que nem vivo estaria mais, quando isso acontecesse. Ele dizia: “Se eu plantar o tempo passa, se não plantar, passa do mesmo jeito. Então, por que não plantar?” Sei que a família talvez preferisse uma atividade mais rentável e menos absorvente. Mas, o que hei de fazer? Se não escrever as coisas que escrevo, quem as escreveria? Sei que não são grandes coisas e por isso procuro incomodar o menos possível a família e os amigos, nesta ocupação que na verdade é muito solitária e atípica. Li certa vez, não me lembro onde, que o dramaturgo Eugene O’Neill se enfurnava no porão de sua casa para escrever sua grande e bela peça autobiográfica “A Longa Jornada do Dia Para Dentro da Noite” e só aparecia aos familiares para tomar suas refeições ligeiras, mal escondendo os olhos inchados de tanto chorar enquanto trabalhava. A família e os amigos participam, sim, do processo de criação de todo autor, não apenas como personagens afetivos e sobressalentes, mas principalmente como inspiradores e propiciadores do trabalho em sua livre e espontânea execução. 

Pergunta: E quanto aos seus hábitos de leitura? Poesia, prosa? 
Resposta: Quem quiser escrever, terá, antes, que ler os bons autores, não para imitá-los, mas para superá-los. Isto é o que Hemingway dizia à jovem que lhe pediu a receita da boa escritura. É claro que ninguém jamais superará Homero, Dante, Shakespeare, Cervantes, Guimarães Rosa.... Mas ninguém em sã consciência espera mesmo isso todo dia. Sonhar alto já é um bom passo no longo e tenebroso caminho. Quanto à forma (ao gênero), entre a poesia de Homero e a prosa de Joyce, fico com ambas, ou seja, sofrendo e gozando ambas as influências. 

Pergunta: Qual é a sua reação ao encerrar a escritura de um livro? 
Resposta: O pesar de não ter conseguido, mais uma vez, o resultado almejado. Mas todo ser humano é o que é, ou seja, como diz Santayana,é ele e a sua circunstância. Se o trabalho ficou ao nível de minha capacidade, então eu o empilho no rol dos inéditos numa das prateleiras de meu armário. Se constato que ficou abaixo do nível, eu rasgo e jogo fora ou o reservo para posterior reescritura. 

Pergunta: Há algum tema, em especial, sobre o qual você se sente mais à vontade para escrever? Resposta: A vida das pessoas em seus trâmites, iniciativas e aceitações, nas suas repulsas, recalques, contentamentos, indignação: todo o processo do que deveria ser e desgraçadamente não é. E tudo o mais. 

Pergunta: Observo a presença em seus contos de “loucos” bem característicos. Há uma relação direta entre eles e o que eles representam? 
Resposta: A cultura popular, que diz nos seus rifões que “de poeta e de louco todo mundo tem um pouco”, é a base mais segura da cultura erudita. Os “loucos” dos contos são pessoas comuns que acordam das teorias e dos sonhos para a prática chocante das realidades imprevistas. São loucos metaforicamente e não patologicamente. Fazem-se de loucos em resposta à possessão do mundo, à loucura social. É uma espécie de recurso de sobrevivência: muitos fazem-se de doidos para não enlouquecerem de verdade. Mas o clima que tento criar na minha ficção fica longe da atmosfera um tanto irrespirável da ficção de Faulkner, na qual, segundo um crítico, seria impossível viver sem perder, dia a dia, a sanidade mental. O ficcionista não é sádico nem masoquista, apenas tenta enfrentar lucidamente o deturpado mundo dos políticos e cientistas de nosso tempo, esses sim, os loucos varridos, os verdadeiros fazedores de psicoses, desde as depressões, obsessões, paranóias até as neuroses mais agudas. 

Pergunta: Seus contos se pretendem documentais? 
Resposta: Creio que isso fica um pouco evidente na leitura, mas é uma falha de minha parte, um cacoete sociológico da primeira fornada de meus trabalhos, que tento corrigir nos trabalhos posteriores. 

Pergunta: Há nos seus contos um certo descrédito nas relações humanas, que são decorrentes dos laços sociais. Em geral até as relações amorosas são frequentemente questionadas, talvez por trazerem em seu interior uma tensão. Há uma ligação direta entre as tensões sociais e as relações pessoais? 
Resposta: O “descrédito nas relações humanas, decorrentes dos laços sociais” vigentes, é uma atitude justa de todo e qualquer observador (que também é o sujeito e o objeto, no processo) da vida em geral nos dias que correm. Pois a chamada vida social está nas mãos de uma classe dirigente egoísta, constituída de figurões que se desesperam no mar revolto de um mundo caótico e, burros e malvados, agarram-se numa tábua de salvação que é a própria besta do apocalipse, a Ganância. Num cenário assim constatado, de temporal iminente, as próprias relações amorosas perdem o fio da meada de uma convivência estável, amistosa e salutar. E aí vem o sado-masoquismo das outras relações para violentar a sensualidade do amor. 

Pergunta: Quanto à forma de seus contos, a maneira como são estruturados. Há uma explicação explícita em construir o conto fora dos padrões estéticos estabelecidos? 
Resposta: A preocupação é necessária em toda intenção e em toda ação criativas. Pode até parecer um recurso de autor sem estilo (que o Millôr Fernandes diz ser – e não é), a procura de formas que agasalhem e apresentem seus conceitos. Os primeiros grandes autores da história não precisaram lançar mão desse artifício, pois eram pioneiros num território virgem e por mais que repetissem não estariam cansando na repetição. Mas depois de alguns séculos de tratamento lingüístico da temática da vida, o terreno ficou meio batido, o monte de lixo dos clichês avolumou-se – e o escritor, para não cansar a beleza do leitor e também para satisfazer o próprio ego, tem que se virar para urdir variações de narrativas e de descrições. Escrever um conto, um poema, pode até ser uma tarefa simples, de fácil execução, para quem nasceu com a estrela na testa. Para um simples mortal como eu, a tarefa é bem complexa – e tenho, como disse, que me virar. E nada de sofrer o desestímulo de quem diz que tudo já foi dito. Se há o estímulo latente e provocativo dentro de nós, é porque ainda não vimos da missa a metade: a outra metade está por dizer, de agora em diante. 

Pergunta: Por que a excessiva “enumeração” dentro de seus contos? 
Resposta: Uma tentativa de escapar da linguagem torrencial e atingir uma síntese através da sugestão dos assuntos e não da explanação deles. Um erro certamente, do qual me penitencio, principalmente depois de aprofundar-me na leitura de Proust e de Guimarães Rosa, autores que fazem dos detalhes jóias da síntese poética. Sempre nutri certa aversão pela extensão do que pode ser encurtado (daí talvez a minha fascinação pelo texto de poesia e pelo de teatro) e assim jogava a lista temática (as enumerações) para o leitor desenvolver a seu gosto. Hoje, se não abomino de todo o recurso, prefiro aceitar o desafio de encher lingüiça com fios de ouro, como fazem os grandes autores, mesmo sem ter obtido a concessão das minas e das grupiaras. 

Pergunta: Para o Sr., a literatura é uma função? E qual seria esta função? 
Resposta: A literatura prescinde de funções. É uma prenda humana, das melhores. Algo muito humano, a rolar intemporalmente no espaço, do ser humano para o estar humano. Prescinde de funções (a não ser quando defende a si mesma no afã de fazer o bem sem olhar a quem). 

Pergunta: De onde brotam suas narrativas? Elas são construídas a partir da memória? Ou da oralidade? Resposta: da memória, esta caixinha de consultas e de surpresas, de música e lágrimas, este computador gratuito que cada pessoa dispõe ao seu belo prazer, para conjurar a solidão, para suscitar novas vivências. Deseja-se, por isso, que as crianças de hoje não sejam tolhidas em seus movimentos, nem sitiadas em seus apartamentos (apertamentos), nem distanciadas do parque de diversão da natureza, esse contraponto benéfico ao parque de diversões da indústria cultural, que até pode ter seus encantos, mas não tem vida própria nem causa surpresa nem suscita a renovação do estoque de emoções e vivências. As minhas memórias têm mais raízes no solo fértil do meio rural do que na pavimentação esterilizante do parque industrial que é todo e qualquer centro urbano da atualidade. 

Pergunta: Suas narrativas se prendem ao “factual”, ao “registro”, ao “documento”? 
Resposta: Prendem-se mais à tentativa de exprimir sensações recalcadas e filtradas no ajuizamento dos valores culturais de minha formação. A tentativa é temerária, pois o que vem quente para o autor muitas vezes chega frio para o leitor. Mas creio que o apego ao “registro” e ao “documento” seria uma opção por receber o material um pouco frio e tentar esquentá-lo depois, o que certamente aumenta o risco de frustração para o autor e para o leitor. São atalhos talvez enganosos no percurso ambíguo. 

Pergunta: Qual é o “pano de fundo” de suas narrativas? 
Resposta: O passado de minha vida, que é uma vida simples e modesta, circunscrita no âmbito das exterioridades, e livre e dilatada no âmbito das interioridades. Qualquer vida (a não ser nos casos patológicos) tem a mesma potencialidade e pode ter a mesma destinação. Creio que até já foi dito e repetido que cada ser humano resume todos os seres humanos, e que todo arraial é uma miniatura do cenário ampliado do mundo físico de nosso planeta. Assim, depois de escrever dezenas de livros aproveitando esse pano de fundo, sinto que ainda poderei escrever outras dezenas, sem esgotar as minas gerais dos personagens e dos cenários. 

Pergunta: Há no interior de suas narrativas humor, erotismo e, principalmente, crítica social? Como unir estas três vertentes? 
Resposta: Gostaria muito de reunir estas três grandes virtudes e atrelá-las nesse saco de dormir e de acordar que é qualquer livro de boa qualidade. Mas é difícil. Mas é necessário. O humor, meu Deus, Millôr Fernandes já dizia que é a mais pura e alta poesia. Para ele Drummond era um grande poeta porque era, também, um grande humorista. No meu caso, sinto dizer que isso fica apenas na vontade. O erotismo, meu Deus, é uma nuvem na qual consigo voar um pouco melhormente, é um belo oceano de águas doces, no qual posso exercitar e dessedentar, para o bem do corpo e da alma. E quanto a crítica social? Já esteve mais perto da preocupação literária, não? É parte integrante da vida de qualquer homem de bem e deve participar do chamado banquete das musas nem que seja de forma indireta, um pouco despistada aqui, um pouco alarmante ali e assim por diante, como se diz... Afinal, quem não se indigna diante da indignidade...? 

Pergunta: A menção sexista não é muito recorrente em seus textos? 
Resposta: É como muitas outras, possivelmente contextualizada, como muitas outras. Não visa incorrer no truque da “facilidade” expressional e cativar o leitor, expondo claramente assuntos velados e tradicionalmente tratados no envoltório preconceituoso dos tabus sociais. Evidentemente qualquer autor tem o maior prazer de pesquisar e escrever sobre o prazer da sensualidade (digo sensualidade e não meramente sexualidade) que nos remete ao princípio vital não apenas da reprodução, mas principalmente da vitalidade orgânica e psíquica, que, juntamente com o pão e a religião, perfazem a belíssima trindade que nos salva da penúria e da apatia numa sociedade cheia de desvios, como a nossa.  
Pergunta: Sua ficção posterior aos contos de “Aço Frio de Um Punhal” segue a mesma linha formal/ conteudística ou apresenta alguma diferenciação? Resposta: Ninguém foge dos próprios passos, nem pode plagiar a si mesmo, indefinidamente. Depois do “Aço Frio de Um Punhal” não publiquei outro livro de ficção, mas revisei os contos de “A Cabeça de Ouro do Profeta” e, perdendo o temor da linguagem torrencial, escrevi dois romances em prosa ( “A Bacia das Almas” e “O Dia do Casamento”), uma tetralogia em versiprosa (“Monólogo e Pranto”, “Por Que Choras, Saxofone?”, “Barra Funda – a Evaporação dos Paradigmas” e “Apenas Um Coração Solitário”), tentando assim retomar o fio há muito cindido da narrativa versificada, que era a coqueluxe dos autores e leitores mais antigos. Escrevei mais dois livros de contos (“Dois Patinhos na Lagoa” e “Contos do Apocalipse Clube”), além de algumas peças teatrais e uma coleção de poemas, que estou sempre revisando. Todos os trabalhos estão inéditos. Por que estão inéditos? Sei não, mas tenho a impressão que as editoras hoje, só publicam autores bafejados pela mídia. Coisa do neoliberalismo da globalização? Sei não. 

Entrevista concedida por Lázaro Barreto em 14/09/99.