terça-feira, março 28, 2006

DOIS POEMAS

1 – A Carga Hereditária (*) Quando pensar na História do Brasil não pense como descendente do colonizador não assuma nem negligencie o sentimento de culpa Depois de tanto tempo é possível que Deus já tenha lavado seu sangue, arejado sua psique Por que se martirizar na penitência daquela sangria desatada de um paraíso logo-logo transformado em inferno? Por que perpetuar tanta violência? Tenha consciência, ó filho mórbido da vida é mais salutar assumir a chaga do colonizado ser pentaneto do índio sem orelhas e sem bagos ser tetraneto do afro na senzala no pelourinho na canga Tenha consciência da realidade na travessia do milênio respire fundo, relaxe e olhe no espelho: não vê nele, renascido das cinzas do lixo da História o verdadeiro brasileiro? 

(*) Escrito por ocasião dos 500 anos do Descobrimento. 

2 – A Árvore dos Sonhos (*) Um dia a árvore dos sonhos inopinados desabou na cabeça de GTO (1) que logo começou a vazar o ouro das dívidas e das imaginações: a dança dos ícones nas gravuras parietais a agoniada prateleira dos ex-votos o balaio das miniaturas e das ampliações a escalação dos totens, manipansos e penitentes a montanha devocional das tribos indígenas as efígies serôdias de Assubarnipal e de Arariboia os perfis enfiados dos heróis da história-pátria os ritos de passagem dos velhos arraiais a acrobática peleja grupal dos roceiros. As entidades espirituais escorregam de suas mãos em sombria, quase opaca luz dos transes que anima os traços e relevos da matéria-prima Assim da fratura dos troncos avermelhados saltam os guerreiros corporais das rodas e labirintos as etnias as classes as mandalas os oroboros os símbolos imemoriais de nossa caminhada É assim que ele tenta regressar à pureza que o quer, mais adiante, aqui e alhures. Um dia depois os galhos e ramos da árvore atávica brotam em suas mãos primitivas e criadoras Assim ele pode sacudir a sina, assim ele expulsa os demônios do corpo para não endoidecer nas horas mais traumáticas de cada dia Assim mergulhado na pureza das horas ele fica sabendo que não existe erro na face da terra essa amplidão doméstica de pobres inocentes. 

(*) Poema publicado no Suplemento Literário do “Minas Gerais” em 02/06/1973. Ele dá título e faz abertura de um filme de Carlos Augusto Calil e Lauro Escorel, de 1978. 

(1) GTO: iniciais (como nome assumido) de Geraldo Teles de Oliveira, famoso escultor, primitivo e criador, enquanto viveu em Divinópolis (era natural de Itapecerica).