quarta-feira, março 15, 2006

A RELER SARTRE, QUARENTA ANOS DEPOIS (*)

O homem, atolado no lodo, é realmente vil? É um doente, sem dúvida, mas se realmente dotado de auto-medicação contra a depressão da angústia, ele pode erguer-se, ainda um pouco solerte e um tanto confuso, com os meios da própria força de vontade. Tocaiado nas curvas dos caminhos e das esquinas, já dizia La Bruyere, o homem vil salta no corpo-e-alma do homem desprevenido, como se fosse uma mosca a procurar dilacerações, para infeccioná-las. Por que não amar em quem amamos (ele dizia-escrevia) “o esôfago, o fígado, os intestinos?” Muito mais bem-amada é a estrela do mar, que expele o estômago na praia estival, para mais ensolarar-se em suas peles internas, momentaneamente expostas. Lulu sentia vergonha de seu traseiro, não queria que ninguém lhe fizesse algo que não pudesse ver – e o marido adorava enxergar com as mãos. Uma coisa de homem, se estivesse sob uma saia, seria como uma flor, ele diz em certa página. Ela sentia prazer em si mesma, pensando em coisas puras, padres e mulheres. As axilas femininas não raspadas, azuladas sob os pêlos anelados, o irmãozinho a cogitar se erali que se fazia sexo, uma parte angelical tão ardorosamente beijável. Um rio vermelho a serpentear sobre campos áridos, era assim o desejo ziguezagueando no corpo dela . Estou sim a reler Jean Paul Sartre: tentei sepultá-lo antes dele morrer, mas sinto que agora ele vem a mim, empunhando suas obras, nas quais a arte das palavras fala mais alto aos ouvidos (supostamente tapados): o existencialismo é uma meia-luz a menosbrilhar nos confins das existências, mesmo nos das ainda não alcançadas. Estou, sim, a reler Sartre. Estou na página em que Risette examina, escandalizada, as obscenidades das formas corporais do corpo da amiga Lulu: “um tralalá pequeno e redondo, ou seja, saliente e indecente”. O traseiro pelo qual a própria dona sentia vergonha, tentava escondê-lo com as mãos e contra as paredes, mas... mas mesmo assim colava-o por dentro da saia e, pronto!, era ali que dançava a magra silhueta azul da pequena redondidade. “Só eu me posso dar prazer”, ela dizia. “Ninguém crê em mim, só o médico, que disse ser uma doença incurável. Meu Deus, pensar que a vida é isto, que é por isto que a gente amanhece e anoitece, se lava e se faz bonita e todos os romances se escrevem”, tudo assim nos trâmites, como se ela não fosse frígida de nascença, afogada em nuvens de pesadas entrelinhas, ela bem que preferia anular-se nos desvãos e nos caudais e ser apenas triste e pura na eterna orfandade... Mais tarde um pouco do dia infindo, ela resolve que rumo tomar na vida e escreve ao amante (apesar da frigidez dividia o corpo com o marido e o amante): “sou sua de todo coração, meu corpo é todo seu... nós nos veremos amiúde como no passado. Henri, porém, se mataria se não me tivesse mais, eu sou-lhe indispensável...”. 

(*) O livro relido é O MURO, tradução de Hovanir Alcântara Silveira, Instituto Progresso editorial, São Paulo, SP, sem data.