terça-feira, abril 25, 2006

MURILO RUBIÃO DE MAL COM DEUS?

Nascido em Carmo de Minas, vivido em Carmo da Mata, antes de fixar-se em Belo Horizonte e empenhar sua palavra na vida literária, ele captou e absorveu o clima das altitudes carmenses no que elas têm de transcendência e de sobrenaturalidade nos austros salubres e nas visões alteradas. A ele naturalmente bastava abrir os olhos para ver e assim respirar os amplos, escantilhados e sucessivos horizontes, como se sem aluir do lugar estivesse nos píncaros dos alpes, dos andes, das canastras e mantiqueiras, a manipular as aparições dos gigantes e dos anões das várias espécies humanamente possíveis, a ouvir e ver as estórias do Padre que misturava ouro moído aos alimentos só porque não queria deixar a fortuna para ninguém, de mal que estava com a humanidade enfadonha e ranzinza; e também a do homem de pele solta na carne e nos ossos, igual a de um gato, que podia, se quisesse, virar o rosto para a nuca, os dedos dos pés para os calcanhares. Numa terra assim pródiga de encantamentos era canja pra ele prestidigitar a ordem das coisas, conhecer o avesso do tempo, ir ao enterro de um anão ou à festa de um ex-pederasta, bem como voar nos cabos elétricos de choque em choque até fazer das tripas coração e dos estrídulos banais a mais requintada canção romântica. Ao lado, abaixo e acima do mundo terra-a-terra existe a geografia mental dos nichos e ninhos, as ilhas de seixos paralelos e complementares, uma ou duas estórias a meio-pau, detidas aqui e soltas ali, a desobedecerem as recomendações de praxe, a desarticularem o lívido raciocínio. E no espaço viscoso do tempo maleável, ele pinta e borda os caracteres, muito à vontade nas técnicas e aparelhagens, a lucidez tentando em vão demover a gama dos comportamentos incompatíveis...: a docilidade apostando no desarrazoado, a complexidade surrando a simplicidade: ah, os duros golpes baixos e altos da gramática!, aflorando aqui e ali os preciosos achados, soterrando lá e cá as obviedades desgraciosas - é assim que bem mais cedo amanhece o dia, saído dos lençóis e cobertores do aninhado impulsionar.... A vida inteira a degustar os sabores mais requintados, sem digeri-los (para jamais escoimá-los). Lia mais do que escrevia? Muito mais. Levava meses e anos para considerar pronto e acabado um conto que no entanto sintetizava tantos outros cheios de pontos e de pontas. Duplo leitor de Machado e Cervantes, Maupassant e Mário de Andrade, acabou caindo, tardiamente, nos braços de Kafka. Mas entre os ângulos do célere e do airoso, ele preferia a diagonal de si mesmo, tentando acasalar a concisão com o esbaldamento na normalidade mais anormal do mundo, ficando entre o certo e o duvidoso, que afinal são faces da mesma carta do baralho do existencialismo de uma agridoce literatura das almas penadas e absolvidas. Em 1966 (plena ditadura militar) ele funda e começa a dirigir o Suplemento Literário do Minas, encarte do Diário Oficial, então distribuído semanalmente nos 853 municípios mineiros, quando fez pela cultura geral o que nenhum outro intelectual fez nos anos posteriores até os dias de hoje: as páginas recepcionavam os bons escritores novos e consagrados, sem criar e manter patotas com o dinheiro público – e além dessa publicação, ele, como Diretor da Imprensa Oficial, aproveitava o tempo ocioso do funcionalismo e do maquinário de imprensa para propiciar o lançamento de novos autores, cujos textos originais fossem antecipadamente estudados e aprovados por uma Comissão Julgadora acima de qualquer suspeita. Paciente com Deus e todo mundo, ele só se impacientava com a mediocridade e o bafafá dos chulos e vaidosos, e mesmo sem escrever, vivia escrevendo (a obra magra é um polpudo resumo essencial?): listava os alimentos, escolhia e remoia, mas quando ia levar à boca, a mão tremia, assim ia se fartando sem comer; entre duas alucinações ele mancava, gaguejava, assim como bom mineiro, ele falava pouco e acertado.... Celibatário convicto, amante à distância de Marilyn Monroe, Greta Garbo e Silvana Pampanini, ele recolhia as cartas, grávido de propensões, ávido de expansões (contidas lá nele sabe Deus como). Ele bebia para fazer boca de pito, insurgia apaziguava comandava; nele o insólito nunca é espantoso: o escritor o personagem o leitor, todos aceitam e aprovam tacitamente o que seria um absurdo e que não é: se o freguês tira do bolso o dono do restaurante, não é por implicância, mas porque gosta de fazê-lo. Todos seríamos prosaicamente normais se a vida e o mundo não fossem, não fossem poeticamente anormais.... Quem não admira o vôo esguio e serelepe da andorinha nas axilas e nas virilhas da mulher amada? Os olhos às vezes não regulam bem e pensam que estão vendo um boi voar: em que ponto eles estão nesse momento delicado? Suas epígrafes bíblicas são os dedos de Deus nas mãos dos homens? “Coisas espantosas e estranhas se têm feito na terra”, já afirmava Jeremias (em 5-30). Hoje não é diferente, nem jamais será. Só Deus é perfeito – o resto só vive por milagre Dele. Mas se para Ele nada é impossível, na literatura de Rubião, tudo é possível, desde que o tiú esteja no campo aberto de jogar bola e não debaixo de um seixo da laje. Sua literatura é elaborada tecnicamente, gramaticalmente correta. Como se dissesse ao leitor: sou doida mas nem tanto.Ou então como se ouvisse de um leitor: o autor está em seu perfeito juízo, eu é que estou ficando livre. Mesmo assim não espanta o leitor, não desarticula as junções, não perde o fio da meada. Se a linguagem fosse empertigada ou acadêmica toda a magia e licenciosidade das ações exauririam o nexo e o léxico do texto e logo-logo seu leitor abjuraria a leitura e ia ouvir a mesma cantoria em outras freguesias. Mas a velha tese de que todo poema (em prosa ou em verso) é um eterno rascunho se confirma em nosso querido Murilo-escritor-reescritor: seus contos são poemas que pingam nas podagens e nos adendos, na circularidade dos temas e dos tons, que pingam nos tropeços e nos descaminhos, até que depois de tanto zaranzar caem no livro como as fecundas chuvas da estação mais propícia. Sua pequena-grande obra do começo ao fim leva-nos a crer que Deus se arrependeu de (mal)criar o ser humano assim repleto de senões e disparidades.... Murilo Murilo, você não se fez de rogado para assim tão delicadamente replicar ao Criador? Cada deformação é uma revisão ou ao contrário cada revisão é uma proposital deformação, visando quebrar uma cansativa monotonia? Será que o Criador lá no íntimo de sua pontualidade crítica terá aprovado e até exultado com a rubiana malcriação que, afinal de contas e de coisas, deixa-nos todos à vontade para observar e descrever os que se viram livremente na vida, por bem e por mal, nesta feira de variedades que é o mundo? Vem à propósito uma de suas epígrafes: “Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade” (Provérbios 30-18).