segunda-feira, abril 24, 2006

AS GÓTICAS LUMINÁRIAS EM SALAMBÔ DE FLAUBERT

Quem alguma vez não esteve a ler um livro como se estivesse ouvindo uma empolgante canção? Quem, ao ler uma página de Gustave Flaubert (1821-1880), não alonga o olhar para o céu da infância e do amor? Quem não se amofina, não se arrenega, diante dos pilares sangrentos da extinta Cartago, do monte de cadáveres nos espinheiros e ribanceiras? Quem não assume, uma vez ou outra pelo menos, o bovarismo mil vezes acalentado em nossos dias? Quem não sonha, quem não quer ganhar na loteria mesmo sem jogar? Que mal faz ao ego, ao id, ao superego querer o melhor que há?, querer ser melhor do que se é? Não faz bem ao corpo e à alma ter tudo que se deseja? A Madame Bovary, senhores jurados e juízes, é todo aquele que quer mais do que tem. E quê mal há nisso se ninguém se contenta toda vez que se entrega ao desprazer do ócio, não é mesmo? Quem pois em sã consciência vai blefar que não é nem um pouquinho bovarista? Quem tem medo de ser feliz tem coragem de ser infeliz? Flaubert foi acusado de ofender à moral política e religiosa, indiciado, julgado e...absolvido. Pois que quase todos no tribunal julgaram-se seus cúmplices, reconheceram-se bovaristas assumidos ou enrustidos. Mas passemos adiante dos monumentos literários que são MADAME BOVARY (publicado em 1856), EDUCAÇÃO SENTIMENTAL (1869), TENTAÇÃO DE SANTO ANTÕNIO (1874), BOUVARD E PECOUCHET (1881), e fartemos-nos de algumas flores frescas ente os rudes espinhos de SALAMBÔ (1862): - a boca rósea como uma romã entreaberta - um vapor sutil, qualquer coisa de divino - a cabeça degolada continuava a chorar - o lusitano a soltar fogo pelas narinas - o leão preso a uma cruz - os porcos afogueados para assustar os elefantes - uma infinita doçura a tombar sobre a terra - as cobras que tinha pés, os touros que tinham asas - as barbas em saquinhos encordoados às orelhas - a cicatriz nas sobracenlhas que se agitavam como serpentes. Amílcar, pai de Aníbal e de Salambô, guerreiro cartaginês, tinha a natureza do golpe repentino de um raio, desafiou e hostilizou a costa italiana numa guerra de 24 anos contra a poderosa Roma, que assim viu sua moeda desvalorizar e assim quase decretar a bancarrota imperial. Cartago, centro do comércio fenício desde os tempos de Nabucodonosor e de Alexandre.Produtividade agrícola fantástica: algumas propriedades mantinham cerca de 20 mil homens na lida. Solo irrigado por canais formava campos de trigo, vinhedos, pomares, hortos florestais, e criavam-se cavalos e bovinos, cabras, elefantes, todos aproveitados na lavoura e no transporte terrestre. Suas galeras trafegavam ente a Ásia e a Bretanha.... Salambô, paixão de Matho, líbio rebelde, chefe dos mercenários, que pagou caro pelo amor à semi-deusa: teve que percorrer as ruas de Cartago sob apupos, pancadas e torturas até expirar, com o coração literalmente arrancado do peito e exposto ao sol, tudo sob a vista da amada, que nutria por ele ardentes ódio e amor, amor e ódio trocando de lugar dentro dela, aos sobressaltos. Vendo-o ensangüentado nos umbrais de seu palácio, ela da sacada tomba a cabeça escoada e rígida, os cabelos destrançados indo até o piso...: foi assim que consumou-se o desencanto. Os pórticos e pilares dos templos suntuosos as arquitaraves e as torres as escadas de bronze, as filigranas de prata os capitéis e linhas de pérolas riscavam os muros entre asas de ouro e cones de esmeraldas : a síntese do apogeu do Velho Mundo estava ali? as portas de marfim os bolsos cheios de palavras do escritor que as tirava como chispas nos olhos os archotes projetavam a linha dos muros os tanques as cúpulas as paredes dos canais o aqueduto oblíquo que atravessava o istmo os conciliábulos os altares o caudal de cisternas os templos dos pontífices das sandálias e dos mantos a dialética da força bruta vai mais uma vez vencer? os prepotentes e os mercenários cairão mais uma vez no mesmo sepulcro? a ambição desmedida quer dizer castigo redobrado? a pilhagem vai indo e desmorona? quem é bárbaro, afinal de contas? o terrorismo vem de longe e vai longe perpassa os blocos perfurados os gradis seletivos as palavras erguem patamares e florilégios os artefatos intemporais marcam presenças: algo rococó um pouco barroco um tanto gótico? os rudes canecões da sanguessuga o lavabo da exatoria o fausto da exposição a céu aberto sob o sol e a chuva o acrílico exibicionista um relâmpago de gala abre o caminho do raio da miserabilidade: delenda Cartago!