AS INFLUÊNCIAS NECESSÁRIAS
Até hoje reouvindo as canções do Recital de Natal de Denise Gonzaga no Santuário Santo Antônio, fico a reagravar na memória, por extensão, os melhores momentos estéticos vividos em Divinópolis nos últimos anos, e é assim, instintivamente, que separo logo quatro absorções: a prática escultórica de GTO, a interpretação teatral de Gentil Ursino do Valle, a criação poética de Adélia Prado, a vocação musical de Denise Gonzaga. Não quero com isso obscurecer outros grandes e belos momentos da cena artística divinopolitana, como o teatro de Oswaldo André de Melo, a música de Túlio Mourão, a pintura de Heraldo Alvim. São experiências felizes e marcantes e indeléveis, riquezas herdadas de graça na bandeja da ternura humana, imprevistas e desmedidas, belamente incorporadas ao patrimônio mais íntimo, municiando a reserva emocional, liberando as tímidas asas das propensões e dos anseios e dos clarões do feliz sofrimento de tanta beleza, naturalidade e pureza. É assim que às vezes, quando a realidade não pode suportar tanto sonho, o próprio sonho se adapta e se conforma para recriar, parafrasear poeticamente a realidade. Gentil Ursino do Valle andava de um lado para outro na meia-luz do palco do THEATRON, destilando em dramáticos queixumes o vício do cigarro e o despotismo da esposa no indefinido andaço cerceado do minúsculo território, a viver na fala e na gesticulação a angústia de sofrer sozinho a dor de muitos, tentando em vão encontrar o argumento para apaziguar a alma ofendida pelo corpo, sem saber se a palavra que usa é da alma ou do corpo, ameaçado que está de perder o corpo e a própria alma, na ausência de recursos mais plausíveis. E então, como será o desfecho? GTO (Geraldo Teles de Oliveira) sonhou que ganhava os poderes excepcionais da criatividade – e quando acordou viu que era verdade, que estava possuído das mãos do mitológico Rei Midas. E podia, assim, transformar em imagens de seu belo prazer todos os pensamentos que vinham em borbotões de esquecidas paragens, de eras extintas há milênios. E subitamente transtornado, mal conseguia aparar os fluxos dos emblemas, das efígies e dos ícones pretéritos, vivinhos da silva, arqueados, saltitantes, loquazes saltibancos. Estava ficando doido?, os parentes e amigos se perguntavam, estupefatos. “Artista primitivo e criador”, veio logo o crítico do Rio de Janeiro (Roberto Pontual) esclarecer e tranqüilizar os parentes e amigos. E as mandalas brotavam de suas mãos na madeira como as chuvas do céu no tempo das águas. E Adélia Prado, que vivia armazenando vivências como qualquer outro mortal, uma atrás da outra, desde a mais tenra infância, até que percebeu num ditoso e abençoado dia que não era uma criatura como qualquer outra, mas que tinha um nome a zelar, que tinha a história de todo mundo na palma das mãos cheias de dedos e de flores e de mágicas articulações. Ah, e daí fez de cada dia passado vários dias de outros tempos, sabendo, a partir de então, que sua vida era múltipla, ubíqua, onisciente, pois que era muitas pessoas nela mesma, todas as pessoas do mundo a viver simultaneamente todos os acontecimentos da humana contingência, todas as vidas, entre tantas outras, que ela conseguiu abraçar e incorporar. E a bagagem de seus livros é inesgotável: quanto mais tem, quanto mais escreve, mais tem que escrever. E a Denise Gonzaga? A contrapartida feminina dos compositores e músicos, o timbre balsâmico do lirismo das esferas e das plenitudes, evocando um descampado rural, uma praça arborizada, um parque de enamorados enleios, uma floresta repleta da mais cantante biodiversidade, uma igreja cheia de devotos da beleza, todos os lugares cheios de deuses e deusas e anjos e santos e pessoas abençoadas pelos salmos, árias, epifanias, apoteoses, poemas na voz dela, que vai desenhando e desenrolando o pergaminho dos abismos de rosas de um mundo agora plenamente habitável. Uma cortina translúcida, uma caixa de surpresas e de milagres: a música ali na paisagem e nas pessoas em estado de silêncio, na esperança de que o compositor a transcrevesse, o instrumentista a tocasse, que Denise a cantasse. Sim, isso assim mesmo. A contrapartida feminina das divas e musas e sereias a cantar que a vida é bela, que a vida é um dia, que a vida é eterna. Ela canta o amor que faz amar.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home