quinta-feira, maio 04, 2006

O SAMBA ENREDO DOS LUZÍADAS (*)

Entrementes fomos à Guanhães no Carnaval vimos o desfile dos foliões: a rua principal adornada em pórticos bandeirolas bizarrias dividia a luz em flocos de cores garridas: a pedraria subtraída, agora chãomente dançável os pés risonhos na infantil beleza de Anne Francis: a pele é um instrumento musical dos melhores? as respirações carnais, a marcha-rancho dos cordões a testa de Ida Lupino, depois tocada de sol noturno esguinchos do lança-perfume na bacia Adoniram Barbosa puxava a ópera do samba-enredo o tema camoniano era “Tu Só Tu Puro Amor” - pois o amor é aventura que dispensa as venturas o enredo em figuras ágeis recontava dançando recontava a epopéia dos Luzíadas, de Camões nas ruas mais interiores da profunda Guanhães. A estrela portuguesa declinava no Oriente caia nas mãos da dinastia espanhola aceitava em casa os cânones do Concílio de Trento: o poeta era provedor-mor dos defuntos e ausentes! mas ele próprio rapava o tacho de ouro... a Companhia dos Artesões financiou seu enterro na noite das dimensões permanentes... mas se é certo que as águas das fontes inspiram, ó minas da Serra do Cipó, inspirem-me! Febo e Apolo são nomes de uma beleza... a maura moura inimiga amante... Camões reconta Virgilio que reconta Homero: as arengas naturais entre os pobres mortais criam os deuses arengueiros que varreram do mapa o próprio Olimpo que faz lembrar as brenhas do sertão... o Parnaso é a Serra Negra de minha terra - a tecnologia portuguesa conquista novos mundos mas outros perigos rondam a vizinhança lusitânia... escapatória não há!, nem segurança? Doze comerciantes portugueses perfazem a comissão de frente os bigodes os aventais as panças as carecas: o desfile desponta nas árvores da rua central: Dom Sebastião e Sua Corte a desatar as naus as velas côncavas inflando... destaques para Nunes Álvares Pereira e Egas Muniz! quadro de ênfase para o desastre de Alcácer-Quibir no qual morrem o rei e a fina flor de toda nobreza o quadro é seguido da ala dos doze pares de fidalgos a caminho da Inglaterra onde combatem em defesa da honra das damas patrícias, ofendida. A segunda estória mostra Vasco da Gama no Oceano Índico: vários quadros perfazem o episódio: o discurso crítico do Velho de Restelo e as batalhas de Valverde e Aljubarreta e a expedição a Ceuta as aventuras na Ilha da Madeira em Serra Leoa o insucesso de Fernão Veloso na Cólquida: o estandarte em letras góticas com a estrofe: “Disse então a Veloso um companheiro (começando-se todos a sorrir): Olá Veloso amigo, aquele outeiro é melhor de descer que de subir? Sim é, responde o ousado aventureiro: Mas eu quando cá vi tantos vir daqueles cães, depressa um pouco vim por lembrar que estáveis cá sem mim”... - a ala das nereidas amigas e as do mouros inimigos respaldam o quadro romanesco. A terceira estória reproduz o concílio dos deuses... destaques de Baco Marte Mercúrio Apolo e também Júpiter Minerva Vulcano Dóris e Tétis... Baco teme perder o prestígio que desfruta no Oriente: insurge-se contra o arrojo lusitano... Vênus e Marte defendem a causa portuguesa, e aí é só pena que voa na Avenida! na retaguarda brilham as divindades menores do Olimpo. A quarta estória mostra o Gigante Adamastor e a Ninfa Tétis: a feiúra dele, a beleza dela com seus cabelos amarrados em coque na nuca os clichês visuais dos amores impossíveis as juras de fidelidade dele as preferências dela por Vasco da Gama a transformação dele em penedo barroco banhado nas arestas pelas próprias lágrimas... a ala da união dos navegantes e das nereidas fecha o quadro bicolor. A quinta estória reflete em elegias o tema-enredo: TU SÓ TU PURO AMOR! o samba esquenta a noite pública os pássaros noturnos batem asas nos ombros de cada folião os cupinchas batem palmas na passagem! os quadros evoluem nos carros silentes a história de Inês a que foi coroada rainha depois de morta o julgamento a condenação a decapitação! depois seu desenterro, depois a sagração, atrás, mais lento, o naufrágio do navio de Sepúlveda e Leonor e seus dois filhos arrematado pela ala das ninfas de Mondengo cujas lágrimas originaram a fonte dos amores encimada com os versos no estandarte: “vede que fresca fonte rega as flores que lágrimas são a água e o nome amores”. A sexta estória conta os vaticínios de Proteu (narrados por uma ninfa) na festa de noivado de Vasco com a deusa Tétis através de muitos quadros enfáticos: os vice-reis da Índia os mapas das terras e mares conquistados a frota de Pedro Álvares Cabral, com a estrofe no estandarte: “mas cá onde mais se alarga, ali tereis parte também com o pau vermelho nota de Santa Cruz o nome lhe poreis descobri-la-á primeiro vossa frota!” A ala dos colonos africanos judiados e a dos índios, depois exterminados, mais onze futebolistas do Clube de Regatas Vasco da Gama, amarram na praia essa estória. Na sétima e última estória, Camões escapa do naufrágio tendo nas mãos o manuscrito dos LUZÍADAS... quadros expressos dele: como sedutor de muitas mulheres ladeado pelos de guerreiro e de prisioneiro depois o de provedor-mor dos defuntos e ausentes depois o de seu enterro custeado pela Companhia dos Artesãos: o enxame de estandartes andantes contam o canto: “a perigos incógnitos do mundo a naufrágios a peixes ao profundo”...: a ala das Túgides, ninfas do Tejo a quem o poeta invocara proteção: forma caligraficamente em três esteiras os três versos móveis componentes: “Não se aprende, Senhor, na fantasia sonhando, imaginando ou estudando, senão vendo, tratando e pelejando”. 

(*) Fragmento do romance em versos BARRA FUNDA, inédito.