O BESTIÁRIO DE MONTAIGNE (*)
À noite leio Montaigne, até altas horas... aprendo com ele a reter a urina, a excogitar o bestiário a empreender a longa viagem nos confins de mim mesmo a sentir-me conivente e abrasivo na fria solidão... ele viveu no século XVI e nos anteriores... a França de então era como a nossa Minas Gerais de agora? tinha os castelos embelezados, os lobos inteligentes! tinha Montaigne, que montava nos alfarrábios, caia do cavalo numa virada do relevo das macegas angulares... é assim que fico a procurar-me nas imagens do tempo: o homem não está provido de todos os sentidos da natureza, ele disse – muitas de suas tolices são cometidas na carência desses sentidos: as galinhas, por exemplo, não receiam o ganso nem o pavão mas temem o gavião antes mesmo de terem qualquer experiência com ele... os ratos escolhem o melhor queijo, mesmo antes de provar qualquer um deles, na dispensa da casa. Assim ele diz na insônia: quantas formas tem a morte de nos surpreender? um rei francês morreu ao cair de um porco, Ésquilo foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia... entre as coxas das mulheres morreram: Tigelino, comandante da guarda romana, o marquês de Mântua, o filósofo Spensipo um papa e o pretor Galo, entre outros! a nossa vinda ao mundo é a vinda de todas as coisas a nossa morte é a despedida de tudo... assim ele diz, enquanto perde os cabelos e os dentes: os insetos que vivem apenas um dia, morrem jovens se morrem de manhã, e decrépitos, se morrem à tarde – se arrancamos as máscaras das coisas e das pessoas, por baixo vemos apenasmente a morte... às vezes o pavor adianta-se à ação do carrasco: ao desvendarem os olhos de um condenado ao patíbulo, viram que ele já tinha morrido, só de pensar no terrível castigo. Quando a filha cativa passava por ele, carregando um vaso de água na cabeça, Psamético, rei do Egito, vencido por Cambises, rei da Pérsia, não desgrudou os olhos do chão, não arredou de seu mutismo; quando levaram seu filho para a morte, manteve a mesma atitude... mas depois ao ver um criado a caminho da tortura, não se conteve em lágrimas, golpeou a própria cabeça, a dizer: “só a última tristeza posso exprimir: as duas primeiras estão acima de qualquer expressão”... Plutarco dizia das pessoas afeiçoadas aos animais que elas supriam lacunas, por não amarem outras pessoas... a mulher carregava o bezerro desde quando ele nasceu, carregava-o diariamente não sentia a diferença do peso continuou a carregá-lo mesmo depois que se tornou um baita de um boi com a mesma naturalidade. A nora de Pitágoras disse que a mulher, ao dormir com o homem amado deve despir-se do pudor quando tirar a saia e só revestí-lo quando revestir a saia... os poetas antigos mentalizavam muitas belezas sobre o amor: Ariosto o define como “o caçador perseguindo a lebre no frio e no calor nas escarpas e trilhas das montanhas e dos vales e que no entanto a desdenha se alcançá-la e só a deseja enquanto a persegue na fuga dela”... Cícero também foi muito feliz ao dizer que “o amor é o desejo de alcançar a amizade de uma pessoa que nos atrai pela beleza”... o próprio Montaigne que nutria um caso de amor secreto foi ainda mais longe: “se insistem que eu diga porque o amava só posso dizer: porque ele era ele, porque eu era eu”. Os animais são mais generosos do que nós? nunca se viu um leão escravo de outro leão um cavalo de outro cavalo... dizem que no Brasil no século dezesseis as pessoas só morriam de velhice, como os pássaros! Nausifanes diz que as coisas que parecem ser não são nem deixam de ser: só a incerteza é certa! Seleuco corrigiu os costumes corruptos dos lócrios: proibiu às mulheres (à exceção das de vida airada) de usarem jóias de ouro com vestidos bordados; e proibiu aos homens (à exceção dos que prostituem a família) de usarem anéis de ouro e roupas de tecidos finos... Epaninondas recusava as riquezas oferecidas pelos fados: queria lutar contra a pobreza, que era grande e nunca o abandonou: “se a liquido, o que me resta?”, justificava; Sócrates submetia-se à prova ainda mais rude: conservava a mulher, que era má, a seu lado (a qual se engenhava em o atormentar, diuturnamente): a verdadeira e permanente armadilha nos caminhos de sua vida. As coisas que mais ignoramos são as mais divinizáveis: o velho costume do filho comer o pai morto era encarado como prova devocional de afeição: dava-se ao progenitor honrosa sepultura... Pítaco dizia que todos tinham sua enfermidade e a dele era a cabeça ruim de sua mulher... andou bem o Senado de Marselha (diz o nosso belo autor a meio-caminho de suas esferas de equilíbrio), ao deferir o pedido de se matar, feito por um indivíduo cuja existência a esposa tornava infernal... Os olhos não cansam de ler: as pernas cansam de andar! é só chegar ao alpendre da Fazenda para ver, lado a lado: o irracional imbuído de amor o racional a doer em quem doer... na noite dos carrascais, os sonhos de pedras e a incerteza inconstante dos despropósitos! você vai ver (diz um ao outro, no jogo de Buraco) quando o carbono mostrar suas unhas rilhar seus dentes cerrar seus punhos... você vai ouvir (lá diz Wordsworth) as vozes dentro dos neblinados penhascos à beira dos caminhos...
(*) Michel de Montaigne (1533-1592).
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home