quinta-feira, maio 25, 2006

NUM CANTEIRO DE FLORES (*)

Esse lugar aí onde repousas a dois passos do bosque escuro onde o verde vivo da serpente assustada é ouro vivo nas mãos da fada... As trilhas que a alma segue à luz pendente o pássaro arcaico das quimeras tantos enfeites no chão trançado de sombras. Esse lugar sagrado, onde repousas, tornou-se mais belo com o tempo que até sofro em presumir, ái de mim! que alguma parte de teu apaixonado ser ficou infiel a mim aí nesse lugar debaixo da relva, onde repousas. Ou será que não estás mais aí e sim num lugar distante, e já me esqueceste? Ou alguém ao lado de teu coração te afagas aí? E então? Por Deus, e então? Uma sombra de folha beija teus lábios? O raio de sol que penetra o seio da terra aquece teus pés e tuas mãos, mantém em serenidade teus meigos caprichos? Os brincos de flores silvestres e o pálio de auras e aragens e aromas bafejam o cordel de teus meigos anseios? Ou será que outro rapaz tomou aí a teu lado o meu lugar e ama-te mais do que eu daqui? Aí embaixo (como vou saber?) o intrometido não estará a enredá-la de palavras afetivas mais plausíveis do que as minhas? Pobre de mim aqui, a pensar feridas e tristezas aqui neste lugar de sombras onde estou, sob o qual docemente repousas... As luzes que minha alma procura estão nos olhos agora cerrados, estão definitivamente lacradas nesse lugar aí debaixo da relva? As abstrações ardentes de teu corpo imortal ornaram as paredes do jazigo, dilatando-as, e a orquídea que espelha a tua imagem pode conceber outra fé em teu amor? E a brisa primaveril que vem do rio pode arrebatar, parte por parte, minha lembrança em teu meigo afeto? Ah, esse lugar aí debaixo da relva! Há muito ele ficou mais belo e afortunado, tanto que agora me faz pensar, ái de mim, que alguma parte de teu apaixonado ser me ficou infiel aí nesse lugar onde repousas. 

(*) Paráfrase de um texto de Marie de France (1154-1189), citado por Will Durant, em História da Civilização (12 volumes), traduzido em prosa por Monteiro Lobato. Companhia Editora Nacional, SP, 1955.