quarta-feira, maio 24, 2006

OS PRIMEIROS 500 ANOS SÃO OS MAIS DIFÍCEIS

Se a descoberta do Brasil foi uma ação divina (como era ensinado na escola), por que os portugueses escravizaram, mataram e queimaram tudo o que puderam escravizar, matar e queimar na nova terra? Os descobridores davam a amedrontada impressão de terem chegado a uma região de chuvas venenosas, e o velho Gandalvo, nos albores brasileiros, falava dos “ventos inficcionados das podridões das ervas e alagadiços”. Fernão Cardin, na mesma época, atentava para a dualidade climática: ao mesmo tempo que influía peçonha nas cobras, lagartixas e aranhas, influía formosura nos pássaros e nos arvoredos. Ele achava que o bicho-preguiça tinha o rosto parecido com a da mulher desmazelada.E medo do que podia estar dentro do mato seria a materialização dos monstros subconscientes. Os monstros lendários e os monstros humanos: eles se revezavam nos perigosos jogos da medonhidade? Colombo, quando viajava na direção do poente, viu homens com rabos e as sereias que viu não eram belas como esperava que fossem. Naquele época existiam baleias até nos rios brasileiros, garante Frei Vicente. O paraíso terrestre sempre existiu no imaginário popular com base nas antigas mitologias, e quase sempre situado no Atlântico. O Frei Vicente de Salvador, numa História do Brasil escrita em mil seiscentos e poucos, endossa essa crendice, afirmando que não é por acaso que Cabral levantou a Cruz no território no dia três de maio, o mesmo dia em que se comemora a morte de Jesus Cristo, batizando aí a colônia com o nome de Terra de Santa Cruz. A troca do nome por causa de um pau cor de brasa, reclama o Frei, foi a primeira vitória do Demo numa terra, que logo perdeu a denominação de Paraíso, porque, segundo os mais descrentes, o Diabo tomou conta de tudo. Tempos depois (e aqui vamos citar Laura de Mello e Souza) já “no início do séc. XVIII, temendo revoltas escravas e enxergando sublevações por toda parte, o Conde de Assumar via nas Minas – nervo da economia colonial – a própria natureza sendo insuflada pelo clima da rebelião”. Na opinião do Conde “a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; desfilam liberdades nos ares; vomitam insolências nas nuvens; influem desordens nos astros: o clima é de berço e tumba de rebelião; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como um inferno”. E assim, com a dessacralização da natureza, a imagem do paraíso terrestre foi trocada por outra, quase oposta. A região centro-oeste de Minas até ao triângulo mineiro foi palco do genocídio de 1751, quando Bartolomeu Bueno do Prado, famoso Capitão do Mato, colecionou três mil e novecentos pares de orelhas de negros fugidos, que ele matou. A desumanidade da escravatura era tanta que Sayers chegou a escrever: “Todo escravo que matar seu senhor, seja em circunstância que for, mata em legítima defesa”. Os escravos sofriam de desnutrição, que causava diminuição de estatura, deformação esquelética, dentição podre, insuficiência tiroidiana, velhice prematura, preguiça, anemia e tuberculose – os mesmos males que ainda afetam brasileiros de algumas regiões que ainda sofrem um regime de semi-escravatura. A pouca devoção do brasileiro vem de longe, desde os primórdios da colonização. O Padre Cardim dizia que as senhoras pernambucanas quinhentistas não eram freqüentes nas missas e confissões; Saint-Hilaire, trezentos anos depois, dizia o mesmo dos paulistas em geral: “as ruas viviam apinhadas de gente que ia às igrejas sem o menor sinal de fervor”. E é nesta ordem de constatações que Sérgio Buarque de Holanda parece concluir: “Não admira, pois, que nossa República tenha sido feita pelos positivistas, ou agnósticos e nossa Independência fosse obra de maçons”. A essa religiosidade de superfície, ele acrescenta, se deve a incompreensão da verdadeira espiritualidade de se produzir, no país, uma moral social poderosa. O pragmatismo (levar vantagem em tudo), acabou derrotando o misticismo (amar o próximo como a si mesmo). Estudando a sociedade brasileira em 1935, Knight Dunlap, constatou como uma ocorrência em todo mundo os casos de crianças e jovens dominados pelos pais e que porisso tornam-se incompetentes, quando não psicopatas, recomendando, a partir dessa constatação, que toda criança deve ser preparada para desobedecer nos pontos em que as previsões dos pais são falíveis. Segundo ele as “boas” mães causam maiores estragos do que as “más” (considerando a significação desses vocábulos em sua acepção popular). Mas o brasileiro é por excelência o homem cordial da legenda? Sérgio Buarque de Holanda nega que as virtudes comportamentais do brasileiro signifiquem “boas maneiras” e civilidade: “são antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Mas isso no homem brasileiro (ele acrescenta) é “uma libertação do pavor que ele sente de viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência”. É uma maneira de fugir da solidão, uma forma de cada um viver nos outros. Uma falta de amor próprio? de insegurança na individualidade? “Foi a esse tipo de humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: “Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”. Assim Sérgio quase citou Sócrates, que Nietzsche, a bem dizer parafraseou. Pois séculos antes o filósofo grego havia dito que o homem mau vive em má companhia, pois todo homem é o principal companheiro de si mesmo. É fácil de ver num telão de fundo negro a projeção da realidade brasileira em imagens de crua violência ao longo da história e da geografia, legendadas através dos espúrios dizeres da vida cotidiana (exemplos: “chapéu de trouxa é marreta”. “quê pedrada no saco”, “esse cara é pau puro”,” vou fazer você dançar miudinho”, “cai no osso aqui do papai”), com que as pessoas trocam desaforos, ameaças e amabilidades. Para o historiador José Murilo de Carvalho, a contribuição do brasileiro na ereção da cidadania moderna é justamente a teoria e a prática da bordoada pedagógica. Depois de informar que a cidadania inglesa se apóia no sentimento de liberdade – e da mesma forma a francesa e a norte-americana, ele diz que “a brasileira foi implantada a porrete. O cidadão brasileiro tem o gênio quebrado a paulada, é o indivíduo dobrado,amansado, moldado, enquadrado, ajustado a seu lugar”. O bom cidadão brasileiro, ele acrescenta, “não é o que se sente livre e igual, é o que se encaixa na hierarquia que lhe é prescrita”. Rasteando as evidência dessa violência histórica, é fácil chegar as às ocorrências testemunhadoras: Antonil já dizia que no Brasil colonial “o tratamento dos escravos seguia a regra dos três pés: pau, pão e pano, ou seja, cassete, comida e roupa. Ninguém via nada de errado nisso. Alguns padres “exortavam os senhores a serem mais generosos no pão e no pano e mais contidos no pau”. Aplicar o porrete em doses razoáveis era mesmo obrigação moral dos senhores, do mesmo modo que é obrigação do pai castigar o filho para o próprio bem deste. O historiador dá um exemplo na pessoa então ainda viva do marinheiro Ferreirinha, que “virou cidadão em suas palavras, no marmelo, na lambada, na chibata. Outros entravam no pau, no sarrafo, no cassete, no porrete, no bordão, na manguara, na vara, no cipó”. E depois, no ciclo do boi de nossa história, o candidato a cidadão tinha “à sua disposição o couro, o bacalhau , o chicote, o relho, o açoite, a tala, o laço”. Hoje as técnicas continuam a diversificar-se: “é o pau-de-arara, o choque-elétrico, o telefone, o afogamento, o fusilamento simulado...”, ou o enquadramento sindical, a coleção de expedientes truculentos das quadrilhas do crime organizado, as guerrilhas urbanas das gangues do narcotráfico, dos assaltantes, dos estupradores, dos marginais em geral que, inspirados pelos maus exemplos dos políticos e empresários corruptos fazem e desfazem o que bem entendem, mandam e desmandam nas comunidades de uma sociedade sitiada e apavorada. Segundo o historiador Waldemar de Almeida Barbosa 90% das cidades mineiras originaram-se de núcleos que se formaram dentro do patrimônio religioso, doado por uma ou mais pessoas, ao redor da capela, cujo orago constituía a devoção de quem tomava a iniciativa da sua construção ou da doação do patrimônio. Assim aconteceu em Divinópolis, onde Manuel Fernandes Teixeira doou 40 alqueires de terra à Capela do Divino Espírito Santo e São Francisco de Paula. Também no antigo Desterro (hoje Marilândia), onde Manuel Carvalho da Silva doou, em 1754, 140 alqueires e ainda construiu a Igreja de Nossa Senhora do Desterro, que lá está de pé até hoje. Para a construção da Igreja de São Sebastião do Curral, a irmã de meu bisavô, Francisca de Oliveira Barreto, doou um terreno de 12 alqueires. E também na Bocaina, o Ilídio Amaro Teixeira (outro parente meu, felizmente) doou igual quantidade de alqueires para a construção da Capela do Senhor Bom Jesus da Bocaina. Raimundo José da Cunha Matos escreveu em sua famosa Corografia Histórica, em 1837: “O povo mineiro é quase em geral honrado, pacífico, trabalhador, generoso, hospitaleiro, inclinado às ciências e artes liberais, e em extremo amante de sua pátria. Assim como em todos os países do universo, também se encontram pessoas de qualidades absolutamente opostas às precedentes, as quais são ferozes, vingativas, bandoleiras e inimigas do trabalho”. Mais adiante, no mesmo livro, ele acentua: “os costumes do povo têm sofrido alterações à medida do crescimento da população e os progressos da civilização. Até 1820 havia maior segurança nas estradas, podendo as cargas de tropeiros, as bagagens dos viandantes, ficarem nos ranchos ou no meio dos campos sem correrem risco de serem roubadas..., hoje (1837) os ranchos são atacados e os viandantes assaltados. Tudo por causa do recrutamento militar obrigatório que obriga o jovem a desertar da família e da sociedade, e levar uma vida errante; e também pela introdução do luxo na província e dos jogos de azar”. Mais adiante ele continua: “O governo de Portugal não granjeou louvores dos povos desta Província relativamente à instrução pública..., supondo que as trevas da ignorância eram o instrumento mais seguro para conservar os homens no sistema colonial. Em toda Província Mineira o ensino público conta apenas 1.358 alunos numa população estimada de 592.797 almas livres e escravos.” Revendo velhos cadernos manuscritos, deparo com o que escrevi em 1968, dois anos após ter chegado a Divinópolis: “O povo divinopolitano é etnicamente heterogêneo, não possui uma tradição cultural, uma vez que a cidade, em contínuo crescimento, não apresenta traços comportamentais mais ou menos comuns em seus habitantes. O crescimento demográfico não é oriundo apenas do alto índice de natalidade, mas sobretudo pela imigração incessante de pessoas de toda parte”. Os adventícios adaptam-se logo ao mimético mosaico populacional, uma vez que não se sente um estranho no meio uns dos outros, mas sim um igual aos outros, pois que quase todos são adventícios. E assim continuamente crescendo, a cidade continuamente cristaliza a imagem mimética que irmana os habitantes na mesma diversidade cultural que, se por um lado evita os malefícios do bairrismo, por outro lado, desestimula o amor do próprio habitat – e assim a cidade mal amada é mal feita e mal conservada , desprovida de uma estrutura de proteção, de embelezamento e de salubridade das artérias ao longo da área construída como que de improviso, ao gosto de cada um, sem a uniformidade conjuntural, a noção estética do equilíbrio, a perspectiva de um paisagismo aprazível.