sexta-feira, maio 12, 2006

TECNOLOGIA DE VIDA, TECNOLOGIA DE MORTE

Tecnocracia: governo de elite qualificada tecnicamente. Estimulada a partir da transição dos séculos 18 e 19 – e já naquela época considerada por alguns como a única forma racional de organizar a sociedade e por outros como instrumento de destruição dos melhores valores humanos em nome do progresso material. Assim está na Larousse. A tecnologia, que originalmente tratava das artes e dos ofícios nas ocupações humanas, sempre existiu na face da terra como meio de subsistência do homem e até dos animais, erroneamente chamados de irracionais. Cada espécie no seu tempo e no seu espaço exerce seus modos de produção e de acomodação, visando a sobrevivência. Até os vegetais e os minerais agem decididamente neste propósito. A fauna planetária é pródiga de exemplos de técnicas específicas de subsistência; os pássaros com seus ninhos e transporte de alimentos e sementes (a casa do joão-de-barro é digna de um artesão perfeitamente qualificado racionalmente); os tatus e tiús e cobras e lagartos com suas locas, as abelhas em suas colméias, as formigas e cupins em seus edifícios, as aranhas em suas teias; os batráquios, os anfíbios, a constelação de insetos e aves com suas plumagens e cantos e luzes; e também os cipós, parasitas e trepadeiras, que sabem onde amarrar suas pencas e cordoalhas.... Também o ser humano, para atravessar as estações, as décadas, séculos e milênios, teve que se virar numa evolução lenta e gradual dos períodos da pedra lascada ao circuito elétrico até chegar a parafernália eletrônica de hoje em dia. Muitos de nós que nasceram e viveram na roça, valendo-se das tecnologias, hoje arcaicas, do arado e da enxada, da foice e do machado, do rego de água no quintal, do curral na frente e do chiqueiro atrás da casa, a horta de couve ao lado do galinheiro, do forno de quitanda e do varal de roupas – tudo isso de certa forma a evocar a nostalgia da confabulação ininterrupta dos parentes e amigos nas salas e nos terreiros das casas, na porta da igreja, nos bancos de madeira das pracinhas, a vida jorrando nos espaçosos,nos respiráveis lugares de viver. Com o passar do tempo, a densidade demográfica exigiu a invenção e introdução dos paliativos da engenhosidade e assim instaurou-se o infinito surto de novidades científicas (agora paulatinamente descartáveis e substituíveis): o telescópio, o microscópio, o motor a vapor e a óleo e a eletricidade, os cronômetros e relógios e fotografias e a danada da imprensa a tudo noticiar e informar – e assim surgiram em todos os horizontes as virtudes das primeiras formas da tecnologia moderna aplicada, como lá diz, novamente, a enciclopédia Larousse. Hoje a aceitação de tal tecnologia não é mais unânime, pois suas farpas, antes despercebidas, começam a ferir as susceptibilidades. Os grandes males de nosso tempo (a depressão, a obesidade, a enfermidade cardiovascular) são a ela indiretamente imputados, uma vez que foi ela que instaurou o desemprego em massa, que por sua vez pelo ócio e pela alimentação quimicamente deturpada causou a obesidade e também o viés criminal que atrai os desocupados, juntamente com a trindade maldita do fumo-álcool-droga – e logo o resultado de todo o descalabro: a fatídica depressão moral que não escolhe cara nem coração para afetar morbidamente. E vemos assim o tantão de males amontoados na inocente mesa de consultório de um inquietado e passivo profissional da medicina, às vezes impotente e talvez ainda capenga na corrida pela implantação diversificada de novas metodologias tecnológicas em sua específica área de trabalho. Vemos então que a tecnologia leva a técnica a uma instrumentação autônoma, com suas próprias leis criadoras de escravos indefesos, que se dedicam a um trabalho que detestam, e que passaram a comer alimentos insossos e insalubres. René Dubois, que esceveu o livro “Um Animal Tão Humano”, confirma a constatação de Lewis Munford (autor de “O Mito da Máquina”): “o homem tecnológico ficou desnaturado, ou seja, desumanizado”, completando a observação de Charles A. Reich, de que o ser humano agora parece um animal da selva que veio passar um fim de semana no jardim zoológico da cidade. Em vez do tempo antes dedicado ao sono, à conversação, aos dispositivos lúdicos, à meditação individualizada, agora temos, disponível, quase que imposto por exclusividade, o lazer previamente organizado, sem dúvida por injunções impessoais, dos patéticos fins de semana dos rotineiros e eternos clubes recreativos e os passeios de automóvel e a programação das matérias-pagas da televisão e o fast-food repugnante das lanchonetes, ou seja, numa frase: diversões técnicas que destroem a noção existencial do próprio ser. Enquanto isso.... Enquanto isso, nesta primavera e neste verão de todo-ano o Brasil inteiro pega fogo em suas matas, capoeiras, campos e cerrados, principalmente em Minas, que ainda agora (enquanto faço estas anotações) arde em quase todos seus quadrantes e círculos. E qual é a tecnologia de ponta que vem socorrer nossa aflição diante das chamas e no meio da fumaceira? Onde estão os semideuses das pesquisas e das inovações científicas? O que a decantada tecnologia faz para debelar os incêndios catastróficos que assolam o planeta? O que vemos, na realidade, é o agora desfalcado mutirão de destreinados ex-roceiros com seus débeis ramos tentando abafar as portentosas labaredas nos sucessivos campos em mortífera combustão. Onde está a decantada tecnologia que se julga capaz de substituir o trabalho humano até mesmo na procriação das espécies vivas? Ela, que provocou o êxodo rural e o favelamento urbano, mal-mal consegue agora registrar nas telinhas e telonas, estatisticamente, a proporção destrutiva das hecatombes, preâmbulos apocalípticos do fogaréu nos pastos e campos e cerrados e florestas e capoeiras e restingas e serras e espigões e parques e reservas, que pulveriza dia-e-noite a biodiversidade das inocentes espécies continuamente sacrificadas pela incúria e culpabilidade de uma tecnologia que mais beneficia a morte do que a vida.