terça-feira, dezembro 05, 2006

O QUÊ É QUE A BAHIA TEM? (*)

Há muito que a filha Ana Paula queria presentear-nos com uma viagem à Europa. Sempre recusamos, agradecidos. Cansada de insistir e talvez pressentindo uma provável xenofobia de nossa parte, ela veio agora no fim do ano de 2003 com as passagens aéreas e a reserva no hotel para o passeio de três semanas na Bahia e em São Paulo, onde ela mora. Convite, assim, irrecusável, como se vê. E foi um barato no sentido ao mesmo tempo literal e metafórico da palavra. A hospedagem no hotel à beira-mar, num apartamento bem alto, que propiciava o descortino da imensidão azul que faz dançar em som gotas de luz (como na célebre canção de Charles Trennet) da orla às ilhas de Itamaracá e do Frade da baia que é um dos melhores estados de espírito da federação brasileira. Dez dias lá, dez dias em São Paulo, no apartamento de Ana, a poucos quarteirões dessa outra espécie de mar (a verdura do solo e do ar) que é o Parque Ibirapuera, cenário da tranqüilidade e da descontração que amenizam os atropelos metropolitanos. De uma e de outra cidade o misticismo e o pragmatismo entrelaçam-se, em dissonância e ressonância. Creio até mesmo que o Rio de Janeiro é uma espécie de herdeiro, uma extensão de toda a baianidade. Mas São Paulo não tem nada a ver. O baiano é místico, o paulista é pragmático. Salvador tem trezentas e tantas igrejas (fomos em muitas, graças a Deus), São Paulo tem trezentos e tantos bancos. Na Bahia a música, a literatura, a arte plástica estão nas pessoas e nos lugares; em São Paulo estão nos teatros, nos museus, nos cinemas. E como tudo é tão farto e maravilhoso, em ambas as cidades! Presenciamos parte da Lavação da Escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim e também parte da comemoração dos 450 anos da fundação de São Paulo. As baianas à caráter, os Filhos de Gandhi, o jogo da capoeira, o candomblé, os ritos afro-indígenas, as vozes em surdina de Caymmi, Bethânia, Gal, Tomzé, Caetano, tudo assim gratuitamente a espraiar-se nas amplas, abertas e encantadas áreas dos Faróis e das Barras, do Pelourinho, da Lagoa do Abaeté, do Itapoá, das galerias a céu aberto dos Orixás em altos e imensos relevos.Tivemos a sorte de encontrar os amigos de Ana, o Alberto e Ana Maria e seus filhos Andrea e Gustavo, tanto em Salvador como em São Paulo – e assim o leque das paisagens multiplicou-se, brilhou ainda mais nas indicações e esclarecimentos. Nós, que já conhecíamos a Bahia de Antônio Vieira, Gregório de Matos, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Novos Baianos e os amigos que publicavam seus textos aqui no tempo de circulação (1968) de nosso jornal AGORA (o Tertuliano Motta, o Ildázio Tavares, o Antônio Brasileiro, o Fernando Batinga, o Carlos Cunha, a Helena Parente Cunha), estávamos agora com outras e novas violas nos bolsos, novas paisagens nos olhos, o gostoso paladar do acarajé, do vatapá, do mugunzá, da casquinha de siri, tudo sendo recolhido para as boas e futuras lembranças. Em São Paulo participamos da Festa dos 450 anos, atônitos diante dos fantásticos jogos florais de luzes e de sons do show de Roberto Carlos (o melhor presente de aniversário para Inês, segundo ela mesma disse, fã de carteirinha que é do cantor), no qual não faltaram as ingratas vaias à Rita Lee (só porque ela andou criticando a cidade pelos jornais da cidade) e a explosão eufórica da multidão diante do auge da festa que foi a apresentação dos Demônios da Garoa, cantando o verdadeiro hino de São Paulo, que é “O Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa. Vimos, ainda, a história da cidade em três dimensões no MASP, os belíssimos filmes Dogville, Encontros e Desencontros, o Último Samurai – e a Catedral da Sé remodelada, a ópera A Força do Destino, de Verdi, e ainda por cima almoçamos, mais uma vez, no Bar da Brahma, palco das antológicas canções de Paulo Vanzoli (Ronda) e Caetano Veloso (Sampa), sentindo o que acontece em nosso coração ao cruzar a Ipiranga com a Avenida São João. Conhecer a Europa? Tudo está mesmo aqui no Brasil, sempre a se descobrir na Bahia e nas cidades históricas de Minas. Ir aos EUA? Suas metrópoles panorâmicas, tentaculares e pragmáticas, estão mesmo ali no velho e sempre novo São Paulo, que não pode parar porque, como diz o humorista José Simão, não tem estacionamento. A viagem foi ótima, um banho de poesia, uma gratificação existencial. 

 (*) Texto publicado no jornal Magazine (Divinópolis, MG) em 14/02/04, com o título de “Bahia – São Paulo”.