quarta-feira, janeiro 10, 2007

A IRONIA E O HUMOR NA LITERATURA

A arte literária é o nada que tudo é ou é o tudo que nada é? E por que estamos a falar dela, quando deveríamos guardar mais um minuto de silêncio e discutir outros assuntos, se é que eles existem sem um prenúncio e uma finalidade necessariamente literárias? Mas, a literatura é um tropeço ou uma fluência? Um jogo de empurra no vai e vem que não vai nem vem para nenhum lugar? Quando se campeia o gado, subindo e descendo serras, margeando riachos, voltamos com os bezerros e garrotes ou o que conseguimos apanhar foram meros cabritos e poldrinhos? Se o escritor vai e volta ileso, sem tergiversar, é sinal que continua indo, indo sem saber se encontra o que procura ou se será encontrado por si mesmo, autor que virou personagem? A serventia da literatura é a mesma da vida: mostrar que o que é, é muito mais do que aparenta ser. De uma simples cana de milho ou da montoeira de esterco na roça é que a vida do mundo aparece e brilha e que às vezes some na ida ou na volta, pois que se assim a vida não dançasse, ah, ela cairia na inércia mortal. O livro IRONIA E HUMOR NA LITERATURA (Editora PUCMinas/Alameda Casa Editorial, Belo Horizonte, 2006) é uma espécie de extensão amazônica de constatações, ilações, descortinos, embevecimentos. É preciso ter muito cuidado ao seguir adiante nos embaraços e pelos lados de suas páginas, para não se perder na raridade dos achados, nos detalhes das obscuras virgindades retóricas, na fartura da biodiversidade em seus tons e reflexos e lampejos, cerrados e veredas de sugestões e de esclarecimentos. Impossível é fluir sem os titubeios, as apreensões e fascinações das infinitas direções e variações encaminháveis. Até aprece que estamos no grande sertão roseano, deparando aqui e ali com as veredas agora perpassadas sob a ótica da elucidação e não apenas da exposição. É uma incursão não apenas para ver e conhecer, mas também para entender o entrelaçamento da irmandade das espécies no emaranhado contexto existencial. A complexidade é uma chave que fecha a porta dos saberes salpicados dessa atual praga chamada auto-ajuda, e abre as outras portas de um velho mundo sempre renovado, sempre encadeado de surpresas indeterminadas. Ao afirmar (na pág. 29) que “a ambigüidade da mensagem é que possibilita o seu potencial entendimento divergente”, ela está acrescentando o rol de opções literárias tanto para nortear como para desnortear o direcionamento dos raciocínios e das vivências fundadas no mimetismo das contradições que se abraçam no afeto e não na logicidade do ajuizamento. Aos poucos e deliberadamente, a autora penetra nas intenções e subterfúgios dos autores premiados pela lucidez de sua atenção crítica – e assim ela vai esclarecendo o que jaz implícito dentro das variáveis angulações de suas reticentes e às vezes interrogativas explicitações. Assim ela aponta “o testemunho oblíquo” de Fernando Pessoa, ao levantar não apenas uma ou duas dores no ato criativo, mas quatro: a real, a fingida e as que transfere aos leitores, lembrando a menção nietzscheriana de que “o sentido da literatura não tem fins pragmáticos, é extra-moral”. Assim brindada pelo próprio estilo crítico, ela vai como que parafraseando os textos (sobre Ironia e Humor) dos conhecidos autores: Camões, Fernão Mendes Pinto,Antônio Vieira, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Gil Vicente, Mário de Sá-Carneiro,Alexandre Herculano, Dostoievski, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa. E é assim que através de acurada análise, ela adentra nos enviesamentos da literatura de nossa língua, interligando seus matizes e lineamentos na própria história literária, que tenta levantar e fixar a ação humana ao longo dos lugares e da cronologia da civilização. Sempre cotejando esses lineamentos de natureza literária com as apurações filosóficas dos grandes mestres do pensamento, de Sócrates a Lacan, passando por Hegel, Bérgson, Schlegel, Nietzsche, Adorno etc. Dos autores estudados no livro dela, tive a felicidade de ler toda a obra de Camões, de Machado, de Dostoievski, de Rosa, quase toda a de Pessoa, boa parte da de Eça, e pouco, infelizmente muito pouco dos outros. Ironia e Humor, díptico das atitudes que se interligam no cotidiano das pessoas, merece dela o atencioso carinho de sua exímia e paciente prospecção ao longo do corolário das obras dos referidos autores. Começa por dizer que a ironia é “a figura de retórica em que se diz ao contrário do que se diz, o que implica o reconhecimento da potencialidade de mentira implícita na linguagem”. Assim as palavras irônicas são compreendidas num sentido que é contrário ao seu sentido próximo, como na peça “Júlio César”, de Shakespeare, quando Marco Antônio, elogiando Brutus, na verdade o condena rigorosamente. Sobre o Riso, ela fala na página 53: “Quanto mais o espírito está seguro, afirma Nietzsche, mais o homem desaprende a gargalhada (...). Nesse sentido, saber rir é momentaneamente, tornar-se “deus”, experimentar o impensável, sair da finitude da existência”. E depois acrescenta: “A organização social, pautada em normas e regras, procura firmar o siso e restringir o riso, bem como controlar o amor”. A ironia considera como sendo “ideológica” toda verdade estabelecida, ela diz, deixando claro que uma verdade de hoje não pode ser a verdade de amanhã. E que o Humor é uma proposta de reflexão sobre a angústia e a impotência do ser humano. Uma volta por cima desses embaraços. Sabendo de antemão que a obra literária “reluta em resolver (seu próprio) conflito básico numa síntese final”, ela reconhece “a tensão, a contradição e a oscilação como essência da vida a ser reproduzida pela arte” (...) através “da ação contraditória, mas convergente, da imaginação e da ironia”. Na obra de Camilo ela constata o mesmo paradoxo da simultaneidade da necessidade e da impossibilidade do “relato completo da realidade”, uma vez que o sentido das coisas “não é uno, mas múltiplo, não é estável ou fixo, mas escorregadio e deslizante”. Sempre a contestar os principais ícones do endeusamento burguês (o dinheiro, o pragmatismo, a mecanização e a vulgarização cultural) o artista moderno “tem então de fazer a sua escolha: colocar-se a favor da incorporação do progresso no campo da arte..., ou resistir a essa incorporação, criticando-a, o que poderia significar o seu suicídio em termos de reconhecimento estético”, deixando no ar a terrível e notória conclusão: se apoiar (o progresso no sentido burguês), o bicho come; se contestar, o bicho pega. Da obra de Eça de Queiroz só conheço “A Relíquia” e “O Crime de Padre Amaro” – e vi o filme de Helvécio Ratton, baseado no romance “Alves & Cia.”, um belo equilíbrio entre as duas colocações , a literária e a fílmica, cada uma valorizando a outra, graças ao equiparado talento de ambos os autores. A certa altura do livro, ela fala da “armadilha triangular do desejo amoroso”, citando René Girard, que garante que “a valorização do objeto do amor pelo olhar de um terceiro é fundamental para a existência e o fortalecimento do desejo”. Lembro-me, a propósito, dos casais que viviam nos sertões mineiros, que se abstinham até mesmo de uma maior freqüência sexual justamente pela inexistência de uma terceira pessoa que pudesse diversificar o despertamento do desejo. Shopenhauer, ela diz, explica que “quando a brincadeira se esconde atrás da seriedade, surge a ironia, e quando a seriedade se esconde atrás da brincadeira, surge o humorismo”. Ao falar de Fernando Pessoa , Leila exemplifica as dubiedades e os paradoxos nas tentativas bem sucedidas do poeta de sugerir a plausibilidade dos confrontos no atingimento poético-dialético (e não do posáico-lógico) das certezas das dúvidas e das dúvidas das certezas. Ela cita alguns poemas dessa linha de dualidade expressiva , dos quais pinço alguns versos: “Depus a máscara, e tornei a pô-la. Assim é melhor. Assim sou a máscara”. ( - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - -). “Leve, breve, suave, Um canto de ave Sobe no ar com que principia O dia. Escuto e passou... Parece que foi só porque escutei Que parou”. ( - - - - - - - -- - - - - - - -- - - - - - -). “Tudo que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa que é linda.” ( - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ). “Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! Eu era feliz? Não sei. Fui-o outrora agora.” ( - - - - - - - - - - - - - - - - - - - --). “O azul do céu faz pena a quem Não pode ter Na alma o azul do céu também Com que viver, Ah, se o verde com que estão Os montes quedos Pudesse haver no coração e em seus segredos!” (- - - - - - - - - - - - - - - - - - - -). “Ah, a ironia De só sentir a terra e o céu Tão belos ser Quem de si sente que perdeu A alma p’ra os ter!” O livro não termina aqui (pagina 232) nestes simples e complexos, superficiais e profundos versos de Fernando Pessoa. Um livro assim aberto aos fundamentos, andamentos e diretrizes da melhor literatura escrita em língua portuguesa, não fecha nunca, jamais termina seu iluminamento sobre os temas recorrentes, congruentes, sempiternos com que distrai e debate sensorialmente e intelectualmente todo ser humano que se preza. Não termina nem pode terminar. O próprio Pessoa sentia que devia sempre deixar um bom bocado não só para amanhã, mas também para depois de amanhã. Depois é uma palavra que significa, sempre, um novo interesse que nos espera.