sexta-feira, dezembro 29, 2006

NOSSA SENHORA DO DESTERRO (*)

Quando o ser humano está assim abismado em vigília, sonho ou insônia, pensando ou imaginando coisas do arco da velha, entranhado e absorto numa espécie de transe liso ou rugoso, é porque está em outra dimensão, numa espécie de exílio em si mesmo, reprisando as cenas bucólicas das saudosas campinas da infância ou as dramáticas dos anos de maior densidade nas peripécias da maioridade.Estar desterrado na própria terra natal equivale a estar mórbido em plena lucidez. “Eu não sou daqui”, a pessoa pensa, na vigília meio-sono, meio-sonho, isso quando não se destampa em seu desamparo o cruel pesadelo da irremediabilidade das coisas perdidas. Dizer “sou eu e minha circunstância” é fácil. Difícil é eleger e assimilar uma circunstância sem ao mesmo tempo desejar tantas outras. Onde quer que vá, o homem leva consigo a própria extradição – e está sempre chegando à terra do exílio, como está escrito no altar de Nossa Senhora do Desterro. Os portugueses que vieram colonizar o Brasil, certamente não se alegravam pelo encontro da nova terra. Ao contrário, certamente entristeciam-se por ter deixado a outra terra, a bela e querida Portugal, lá deles. É por isso que quando e onde chegavam e paravam, iam logo batizando o lugar com o nome de Desterro, tendo como orago a santíssima Nossa Senhora do Desterro, que se exilou no Egito para salvar a vida do Filho. Assim as Paragens, Aplicações e Freguesias tiveram depois, quando se tornaram Distritos e Villas, que mudar seus nomes: até mesmo Florianópolis, aparatosa Capital, já se chamou Desterro. E no Oeste de Minas brilhavam nos mapas dos séculos 18, 19 e 20 as Freguesias e Paróquias do Desterro do Tamanduá, do Desemboque e do Entre Rios. O do Tamanduá é o mais antigo (temos suas notícias desde 1744): sua Capella, hoje firme e bem de pé como Santuário, foi construída em 1754 pelo português Manuel Carvalho da Silva (um dos fundadores da Villa de Sabará), nas terras de sua fazenda na Sesmaria do Cláudio, no então chamado Sertão de São Bento do Tamanduá, Villa de São José Del rei (hoje Tiradentes). A sede senhorial , rústico arremedo de um castelo medieval, foi erguida no espigão mais alto do lado esquerdo do Rio da Boa Vista, enquanto a Capella foi erguida por ele no espigão mais alto do outro lado do rio, de tal maneira que do alpendre de seu casarão, ele podia contemplar a capella e do alto dela podia divisar a sede senhorial da fazenda, na rampa do Rio, ao lado da montanha escarpada e de uma floresta entre grutas e pedreiras. O casarão foi violentamente demolido no ano passado (quando se processava legalmente seu tombamento no Patrimônio da Prefeitura de Cláudio), por um desalmado predador e picareta de Belo Horizonte. Mas voltando ao nobre e afetuoso Manuel Carvalho da Silva: amarga e pesada deviam ser a angústia da consciência de seu exílio nos solstícios e plenilúnios da densidade ambiental (os reinos animal, vegetal e mineral ainda não conspurcados, tão salutares e esplêndidos como quando foram criados) circundantes. O que, e como ele devia sofrer toda tarde, quando sentava no alpendre, em seu diuturno solilóquio nostálgico (nem casado ele era – e para constituir o patrimônio da Capella teve que levar moradores de Passa Tempo, a fim de comprovarem seu estado de solteiro, sem dependentes), a contemplar de longe o templo barroco, e mais longe, no infinito horizonte do verde crepúsculo além dos mares, o seu querido e saudoso Portugal, onde viviam seus parentes e amigos mais chegados. A Festa de Nossa Senhora do Desterro acontece todo ano, em julho, em Marilândia (nome que substituiu, aleatoriamente, o de Desterro), a vinte e poucos quilômetros de Divinópolis. Os devotos do lugar capricham nos arranjos e fazeres, aprofundam-se nas rezas e nos cânticos; os romeiros chegam aos milhares de todo Brasil em centenas de veículos automotores, de forma que o lugar fica ainda menor para caber tanta gente. E sempre foi assim, pois Nossa Senhora do Desterro é considerada milagrosa e os romeiros acorrem das quinze bandas, imbuídos de fé e piedade. Nos últimos anos, no entanto, os meliantes e bagunceiros das cidades vizinhas aproveitam o cenário e a ocasião para armar suas contrafações, estrepolias, apostasia, roubos, brigas, pornografias, sacanagens, o diabo a quatro. No ano passado roubaram oito veículos, entre carros e motos, dos romeiros; neste ano o surrupio não foi menor e o pequeno trecho ferroviário ficou ensangüentado com os abalroamentos e capotamentos que resultaram numa morte e várias vítimas de ferimentos. A bagunça foi tanta que a Procissão não pôde dar a volta na rua, toda tomada pelos vândalos bêbados e drogados. Afinal, o que está acontecendo com a juventude de nossos dias? Todo-mundo com a mãe na forca, desesperado? Já chegamos à “última baixeza” da degradação humana? É de clamar aos céus ver uma festa tradicional ameaçada de interrupção porque as pessoas do mal sobrepujam as do bem – e por mal dos pecados o poder público desiste de seu dever de propiciar à população o culto festivo de suas crenças envultadas de fé e piedade. Como pode, assim em poucos anos, o Diabo tomar conta de todo o espaço do arraial, com seus pagodes de mau gosto, suas barracas de quinquilharias e de espetinhos de gatos, o escarcéu dos aparelhos de sons, a lubricidade dos descarados de ambos os sexos em plena luz do dia e a céu aberto, a bebedeira, a intoxicação, a carnavalhice desbragada? Como pode, senhores funcionários públicos, responsáveis pela segurança e pela manutenção da moral e dos bons costumes? “Oh Nossa Senhora do Desterro, oh mãe dos pecadores; desterrai todos os males de nós, compiedade. Oh Nossa Senhora do Desterro, que na volta do Egito este nome recebeste, em companhia de José e de vosso Amado Filho, nesta igreja viemos visitá-la, rogando que desterre nossos males. Tem de nós compiedade” (trecho do hino-oração cantado pelos romeiros na Procissão”. 

 (*) Texto (revisto) publicado no Jornal Magazine (de Divinópolis, MG), em 16 de agosto de 2003.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

BOM DIA SEU LAZARO.Li e vi sua pagina ,o senhor esta de parabens pelo trabalho de divulgaçao de marilandia,onde ultimamente anda um pouco esquecida pelo poder público de itapecerica,no qual deveriam dar mais atençao,pela sua historia.
Sou di Divinopolis,moro no Rio de janeiro,mas vou la em marilandia sempre que posso, minha mae mora la e é conhecida como (dona nega),que veste de rainha todos os anos,no reinado que la acontece).Um abraço ao senhor

7:45 AM  

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