quarta-feira, maio 30, 2007

LEITURAS INQUIETANTES II

Como ia dizendo outro dia, a mania de ler não me faz diferente: apenas me naturaliza no contexto, para o qual sou uma fração de segundo e outra fração de átomo (que jamais pode desintegrar). Uma vez vou de ônibus lendo a ficção e a poesia e os ensaios de Edgar Allan Poe; outra vez volto de trem de ferro lendo a paisagem das palmeiras ao vento, das plantações no sol e chuva das estações do amor de Deus. Mas de vez em quando o supra-sumo da preciosidade fica bobo e desprezível? Onde foi parar o gume do livro e do caderno? A auréola? O solavanco? O arrebalde das emoções?: As páginas em branco, uma pergunta atrás da outra em viva voz: só o que se lê é que muda de lugar? Cada palavra na sentença escorrega e cai. E agora, quê frase vem lá com aquela pessoa? É preciso ler nas entrelinhas, avançar no dicionário e nas expressões, tirar o sumo da casca, a essência da flor, e não ficar bobamente por aí repisando a trouxa de roupa suja dos reles verbetes “ta legal”, “é jóia”, “falou”. Meu Deus do Céu, os próprios monossílabos carregam epígrafes e epílogos na polissemia do virtuoso linguajar. Os livros e cantos de Ezra Pound vinham nos ventos quentes dos pantanais, nos frios mortais das montanhas, mas o ódio, esse ele jamais concebeu. Os olhos de luz dos dragões da noite, assim é o amor de Shakespeare: a fome na fartura: um ator que representa o Luar e outro que faz o papel do Muro. A Odisséia de Homero ao lado da do Ulisses de Joyce: os homens de hoje são as almas penadas dos deuses de ontem? À frente de seus errantes pés, Deus fez o mundo, como diria W. B. Yeats, onde o prazer da alma não fere o corpo. Ler e escrever são modos aproximadores e complementares de ver e tocar, de ir e ficar no transitório do imperdível; assim a leitura desfolha o calhamaço pós-moderno, os olhos são os lábios da volúpia, e de surrealismo a surrealismo você sente o dia desdobrando como uma toalha de banho no rosto, e Louis Aragon pergunta a uma das árvores do campo de futebol, onde tinha escondido suas fitas vermelhas. E André Breton vem dizer das tardes que partejam uma porção de cadáveres delicados.... Por que lê tanto assim, rapaz? Uma vez alguém me perguntou, julgando que lendo eu me desenturmava dos semelhantes. Ah, respondi, leio para tentar entender as pessoas e a mim mesmo, para aproximar as coisas remotas e distanciar as inoportunas e recalcitrantes. Mas, o que estou a dizer? Ah, isso mesmo: foi lendo uma vez Virginia Wolff que senti que andava pelos campos com uma mulher muito bela, pela primeira vez na minha vida: sim, com estrelas nos olhos e a brisa nos cabelos. E você, o que tem a dizer sobre o assunto? Ainda não sabe quem escreveu sobre sua vida? Experimente ler Alberto Moravia, Stendhal, Graciliano Ramos, Balzac, Machado de Assis, Flaubert, Pedro Nava, Franz Kafka, Murilo Rubião, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Adélia Prado. Você deve estar lá, inteirinho ou mesmo fragmentado, nas páginas de seus livros imortais. É só vendo e sentindo , ou seja, lendo o sofrimento dos outros é que entendemos o nosso sofrimento, a mais certeira, inflexível, inescapável de todas as constantes da humana vivência nossa de cada dia. Ana Hatherly. Já em1965 ela explorava a potencialidade lúdica das palavras, e seu poema “Quando a Lua Vier Tocar-me o Rosto” é uma prodigalidade de domínio da veia poética desatada. É um poema eternamente novo e creio que daqui a mil anos um poeta que souber das coisas como ela sabe, vai reescrevê-lo e o “coração do tempo”adornará as horas da casa e dirá que a sombra da lua no rosto é constante e nunca extinguirá.