terça-feira, setembro 09, 2008

MARCEL PROUST (1871-1922), A ARTE DE REVIVER

Continuar a ler Proust, depois de ocasional interrupção, é como se Chopin ainda estivesse ali ao piano, seus dedos de água de cheiro na pedra trêmula, os murmúrios de aves no sono mais lúcido, o fremir inconsciente antes e depois de cada palavra, a interrogada moça dormindo na cama almofadada, as várias albertinas na cativante, substantiva Albertina. A leitura é assim como se andássemos nos dias e lugares comuns, sentindo mais do que fazendo as coisas, encontrando aqui e ali sentimentos e pensamentos em jorros de luz e golfadas de ar, espelhando a notoriedade de um pormenor que se avoluma, um cisco tornado rocha, o viés deslumbrante do paraíso que julgávamos perdido. Umas linhas de páginas a dizer que “em todas as primaveras as flores, ao renascer, iluminavam algo mais que tumbas”; a reconhecer que “há coisas que não existem senão graças a uma criança perpetuamente remoçada”, como se a natureza fosse um ficcionista a dizer e repetir que “a única vida plenamente vivida é a literatura”; pois “a criação do mundo não ocorre de uma vez, ela ocorre necessariamente todos os dias”. A leitura de Proust tem que ser vagarosa, prelibada e prolongada no saboreio, como se estivéssemos degustando suas rosquinhas molhadas no chá.... Só o lerá quem tiver tempo disponível, nada de urgente a fazer. Uma leitura dinâmica de qualquer de suas páginas seria impossível. Ele se emaranha e emaranha o leitor nas ramagens e no torvelinho e a fluidez estaca-se a todo momento a cada linha do livro, forçando a releitura para emendar as imagens e pensamentos fracionados. Um tanto confuso? É a forma dele, a forma proustiana, muito imitada e nunca igualada. É assim que ele vai entrando no matagal e deslindando a multidão de ocorrências visuais e pensamentais, revolvendo e envolvendo as ramagens com a trepidação do solo fértil de sua imaginação e com os troncos e raízes e os galhos e folhas e a diversidade existencial de tanta vitalidade disponível na paisagem e no momento de sua analítica contemplação. Pois é no meio do cisco, entre as hastes e as copas, na folhagem pastosa e passável que encontramos, aqui e ali, a todo momento, as jóias e os lírios, os peixes que nos escapavam e que agora, como frutas, se nos oferecem. Na medida em que não pára de pensar, ele continua a falar consigo mesmo, continua a escrever as intermináveis páginas, esmiuçando as ocorrências na tentativa de explicá-las a si mesmo e, consequentemente, aos leitores. O que muitas vezes sufocamos com um simples ponto final, ele emprega a vírgula do jorro pensamental e assim revolve e dá vazão ao que o importuna e o faz sofrer, na tentativa, talvez, de apalpando a dor e examinando detalhadamente a ferida, assim em vez de sufocar ele exterioriza o sofrimento. Pois que passando o tempo, assim ocupado, a dor será atenuada na medida em que seja em si mesma explicada. “Deixemos as belas mulheres aos homens sem imaginação”, ele diz em “A Fugitiva”, para acrescentar que o que amamos “está por demais no passado, consiste por demais no tempo que perdemos juntos, para que tenhamos necessidade da mulher toda..., basta um palminho de cara, esse sinal em que resume a personalidade permanente de uma mulher”. Proust não é curto nem gordo, ao contrário, é longo e magro, curvilíneo, profundo e altíssimo, apesar de um tanto estrumbicado e ciumento, aferrado à força de vontade, quase monomaníaco. Seus livros extensos e lindos, os capítulos imensos e crepitantes, os parágrafos derramados e persistentes nas divagações, as frases longas e os períodos maiores, eclipsando e valorizando o esforço acompanhativo do leitor. Os períodos longos como cipós envolventes, que se perdem em trançados e ramagens. Às vezes perdemos o fio da meada, o deslindamento do conceito no envoltório rutilante e não meramente retórico (pois tudo tem sentido ali, até uma vírgula, um artigo indefinido, um verbo irregular), de tal maneira que passamos em cima dos versos transfeitos em imagens e conceitos, seguindo a linha racional dele que, no encompridamento do período, já não sabemos onde começa, onde chega na beirada e estaca num ponto final, que nada conclui, mas deixa vazar o que vinha e o que vai como o melado na gamela, pastoso e doce, sem pausas e reentrâncias, e que logo vai se transformar num quitute, numa rapadura, numa camada de aguardente. E a comer e a beber, o leitor se realimenta continuamente na leitura, Para falar de uma possível supressão do sofrimento do ciúme, ele debulha o raciocínio: “não pude jamais acreditar nisso, acreditar que a morte não faz mais do que riscar o que existe e deixar o resto intacto, que ela arrebata a dor ao coração daquele para quem a existência do outro não é mais que fonte de mágoas, que ela arrebata a dor e não põe nada em seu lugar.” É assim que ele diz e continua a dizer, a sobrepor coisa sobre coisa, de tal maneira que o período se torna um leque de pétalas de múltiplas significações: ao lado e além da brisa que oferece, traz ainda as ramificações adjacentes de perfumes interligados a visões, a rumores musicais, suspiros angustiados, silêncios de amor. As primeiras cinqüenta páginas do Volume VII (O Tempo Recuperado) são irrelevantes, fastidiosas? Falam dos Goncourt, de Dreifuss, dos salões aristocráticos, de toda a fauna da decadente nobreza de fim de século, remoendo assuntos datados e cansativos, como dirigir um automóvel numa estrada repetidamente conhecida. A gente vai indo sem prestar atenção nas margens, os olhos presos à pista de rolamento, pois as margens não oferecem mais surpresas, passaram a ser corriqueiras. Passamos por passar, lemos por ler, mas é preciso passar e ler para depois chegar aos pontos de interesse: no feitio de um terreno com as árvores inclinadas, quase que com as pontas no chão das encostas, e uma casa de feição atípica, zangada ou alegre em sua fachada de arabescos e alpendre de azulejos. Não podemos saltar quilômetros e páginas, sob pena de perdermos dádivas inincontráveis depois. Fisicamente, cada livro de Proust parece um tijolo inteiriço, manejável e acomodatício, mas contendo um peso formal de leveza, não de barro cozido, mas de pedras argamassadas nas preciosidades de lâminas finíssimas, cada uma contendo em sons e gravuras uma especialidade literária, a vida em suas roupagens: as várias juventudes conservadas de uma pessoa, as intimidades surpreendidas, as contendas do amor nos parques e jardins e alcovas, outros afins e achados: a poesia da mundanidade, a felicidade do defunto, o gosto e o hábito das inversões sexuais, a lógica da paixão e suas debilidades, as pessoas que não apertam a mão de um canalha, o amor que torna a pessoa mais crédula e menos soberba. Mais que um arquivo de filigranas, cada livro é um mostruário de sempre-vivas impressões: a suma validez da vitalidade em doses homeopáticas; a perpétua recriação das coisas do mundo; o olhar nublado dos nevoeiros da frieza; a frase diferente na flor de um lago desconhecido; os limitados campos do prazer e do vício; a impossibilidade de escapar da hereditariedade; os velhos corruptos, sempre reeleitos; os desapegados da vida, que a morte já fez entrar em sua sombra; o saber tardio de que os verdadeiros paraísos são os que perdemos; o mundo do desejo, que só é visto pelo espírito; as belas idéias que são árias musicais ainda não ouvidas; o nome que contém entre suas sílabas o vento veloz e o sol brilhante; o livro essencial que já existe, que precisa não de quem o escreva, mas de quem o traduza; a realidade que corremos o risco de morrer sem ter conhecido, e que é simplesmente a nossa vida; que os filhos legítimos são filhos da obscuridade e do silêncio e não do dia claro e das conversações; saber da semente que acumula todos os alimentos que vão nutrir a planta, desde o seu frescor aveludado...; considerar o tema de nossos conflitos com as pessoas cruéis; saber também que o livro pode ser um vasto cemitério de nomes apagados, e que a felicidade é saudável ao corpo mas é o desgosto que desenvolve a força da mente. Como fazer para procurar a alma dos lugares (as fadas e sombrações, os gênios e divindades, a sacralidade)? Aprendemos com ele que é só procurar. Ele podia ser lá homo ou hetero, isso seria sua condição e seu direito, mas poucos autores souberam falar da mulher como ele. Um pequeno exemplo, pinçado alhures nas páginas de O Caminho de Guermantes: “a beleza... material e inclusivamente inscrita na sua nuca, nas suas espáduas, nos seus braços, no seu talhe..., a linha deliciosa e inacabada era o ponto de partida, a geração inevitável das linhas invisíveis com que o olhar não podia deixar de prolongá-las, engendradas em torno da mulher como o espectro de uma figura ideal projetada nas trevas...”. E mais adiante: “...ví que o suave ninho de alcione que ternamente protegia o rosado nácar das suas faces era macio, brilhante e aveludado, uma imensa ave do paraíso..., os braços pareciam erguer-se-lhe sobre o peito como essas folhagens que a água desloca ao fugir..., uma proporção perfeita, no gênero daquelas que nas cores, nos perfumes e nos sabores vêm muitas vezes excitar em nós uma sensualidade particular..., fora-me preciso saber que o ato habitualmente não advertido de respirar pode ser uma constante volúpia.” Uma simples saudação acompanhada de um ligeiro sorriso dela, era para ele uma obra prima de aquarela, acrescentada de dedicatória. Às vezes um palminho de cara de uma mulher era tão intrigante e maravilhoso para ele, que ele acreditava que primeiramente a imaginação o tinha visto. Sentia ao revê-lo como se nunca a tivesse visto de outro modo e de tão perto. Mas às vezes nem notava o próprio sentimento e só depois de ter visto a Sra. de Marsantes (pág. 195 do citado livro) é que sentiu que “a verdade da beleza é tão peculiar, tão nova que não a reconhecemos como beleza”. Seu grande amor, Albertina, tinha um rosto de “superfícies uniformemente coloridas que poderiam comparar-se às carnações vigorosas de certas flores: sua pronúncia era carnal e doce, e ao falar já parecia estar nos beijando”. Albertina assim vai até chegar no ponto de inspirar mais ciúme do que amor, paixão menos trágica que a de Otelo e Desdêmona, mas de igual profundidade. Dos sete volumes da coleção, não li ainda o “No Caminho de Swann” e “Sodoma e Gomorra, que estão naturalmente agendados. Dos lidos anotei por alto o que mais me chamava atenção, sabendo, é claro, da ociosidade disso, uma vez que não podemos congestionar na memória o livre trânsito das idéias e das imagens em estado de desalinho e de estupefação. Penso que todo bom leitor merece entrar nesses lugares e nesses tempos do romance-rio proustiano. Sei de mim que mesmo sem anotar, jamais esqueceria das passagens sublinhadas mentalmente, como a do pássaro que recanta o nome de seu amor: a felicidade, como o horizonte, sempre adiante; a morte que não põe nada em seu lugar; as morenas da pequena burguesia; a importância social de um escritor; a universalidade do desejo; o amor, propagação de redemoinhos; os novos sons do violino interior; o dito: “não estrague o gosto antigo com a pincelada moderna”; açoitar as águas que engoliram os barcos; a ansiedade que vai além da beleza; “o plágio humano a que os indivíduos mais dificilmente escapam (e mesmo os povos que persistem em seus erros e os vão agravando} é o plágio de si mesmo”; o que não encontramos numa está noutras pessoas; reter a imagem fugidia; as moças do povo também são deusas; a cor de um dado timbre; as semelhanças dissimuladas e involuntárias; ficar perto do invisível e do inefável; o que Dostoievski trouxe de único no mundo; a impossível interpenetração das almas; nossa memória é uma espécie de farmácia; conservar as várias juventudes; as conquistas fáceis e as derrotas definitivas; o que já estava claro antes de nós, não nos pertence; a idéia da morte como um amor. Incontáveis anotações para infindáveis meditações. É ou não é uma bela aventura entrar e prosseguir a leitura das páginas de Marcel Proust? Ele é talvez o mais inimitável dos escritores. Qual outro começa a página e vai por ela afora como quem não quer nada com a dureza da estética linguística, os achados excepcionais, as frases de efeito, o jogo das metáforas e a pressa das ilustrações éticas, e mesmo assim, sem exibir preciosismos, vai deixando pelo caminho os naturais fulgores e perfumes, os emblemas da naturalidade existencial das coisas na torrencialidade palavrosa? Ao longo das narrativas e das descrições, o leitor às vezes pensa que está nas mãos de um escritorzinho que não sabe discernir a síntese expressional no emaranhado vocabular?... Ele é também mestre na arte de enganar: como um aprendiz de repórter de assuntos domésticos e debulhador de generalidades, ele vai alinhavrando as possíveis trivialidades e no meio delas, quando menos se espera, ele respira o brilho e depõe a segura expressão que o leitor queria e nem mais esperava. E da enganosa vulgaridade desponta a genialidade que se escondia para melhormente expressar o surgimento das coisas nas palavras, das coisas vivas em palavras que são mais que palavras, que são pensares, fazeres e dizeres. Seus personagens se equivalem na seiva, na pele e na medula. “Os criados de quarto são mais instruídos que os duques e falam em francês mais bonito, mas são menos simples e susceptíveis”, isso ele disse em carta à amiga Mme. Sert. Paul Valéry soube resumir o resultado do trabalho dele: “Por seu intermédio, a imagem de uma sociedade superficial é uma obra profunda”. Ele reconhecia que os financistas não sabem viver. Como então querem ser donos de casas e de terras e das pessoas? E logo transige do estóico verismo à lídima delicadeza do casamento das flores, que para ele é divertido, sem lanches e sem sacristia. E assim desenha o conluio da noite nupcial delas: “Tudo é simples e discreto. Nota-se apenas uma chuvinha alaranjada ou uma mosca poeirenta que vem espanar as patas ou tomar uma ducha antes de entrar na flor. E tudo está consumado!” É certo que todo bom texto não pode encerrar o assunto, logo depois de exposto. Ele se esgotará mesmo? Quando? É preciso atentar para as outras variantes e dúvidas, ilações e possíveis enigmas insuflados, o que certamente ele faz e deixa de fazer, ou seja: o caminho nunca termina por causa das curvas que ele mesmo faz ao longo de si mesmo. Em trecho traduzido por José Nava de um livro sobre Proust, André Germain levanta a hipótese de que a Princesa de Parma, personagem de Proust, seria na realidade um decalque da Condessa D’Eu, na verdade a verdadeira Imperatriz do Brasil (a Princesa Isabel), que então vivia em Paris e freqüentava o mesmo círculo social do escritor. Lembrar e esquecer são páginas lidas e relidas do livro da memória: cada uma guarda a paisagem de um dia para o resto da vida, que pode ser a da laranjeira carregada de frutas maduras ou a do pai morto entre flores murchas no esquife, ou a das mulheres mais peregrinamente belas que já se viu nas ruas ou nas praias, ou a familiar ingratidão de alguém num momento de infortúnio de outro alguém. Ah Proust, a música que amamos leva-nos perto do invisível e do inefável, não? Mas quando chegamos ao local ah, Proust, aí adormecemos. De certa forma em certos instantes chegamos a saber mais que antes (um saber que no entanto não adianta, só atrasa): se não era Deus quem nos dava a chuva, quem era? Se não era Deus, ó meu Deus do céu, quem agora vai impedir que nos tirem a chuvinha fina e a chuva grossa de nossa cabeça e de nosso telhado, sedentos? De vez em quando acontece o atordoamento estético, que pode até causar a súbita estranheza e uma lenta recuperação, como quando ele descreve a impressão de Bergote diante de uma pequena superfície de um muro amarelo num quadro de Van Meer, na qual estremeciam pequenos vultos de azul sobre a areia rósea, reavivando, no espectador, a criança atraída por uma borboleta amarela, que ela quer pegar porque amarra seu olhar. Depois de abrir-nos a alma, a música inunda-nos de impressões originais, inextensas, “irredutíveis a qualquer outra ordem de impressões”, ele diz na pessoa de Swann. O nome completo dele: Valentim-Louis-Georges-EAugéne-Marcel Proust. A asma o aflige a vida inteira. Começa a escrever “Em Busca do Tempo Perdido” em 1905. Passa 13 anos em seu quarto sem calefação e forrado de cortiços, tresandando a fumigações. Morre em conseqüência da garganta inflamada, que evolui para bronquite e depois para a fatal pneumonia. Seus personagens, ao contrário de quem pensa que sua obra é mais memória que ficção, são fictícios e despidos de chaves identificatórias na vida real, mas foram sim, como disse Manuel Bandeira, forjados, “segundo a lógica dos seus temperamentos, dos seus hábitos”. André Gide (disso nunca o perdoei, apesar de amá-lo muito) devolveu-lhe, em nome da editora, os originais do “Caminho de Swann”, sem ler, assim gratuitamente, ou por insidiosa implicância. E o que lhe diz a quiromante por ele consultada? “Nada posso dizer. O senhor é que poderá descrever a minha vida e o meu caráter”. Antes de morrer, ele dizia aos amigos: “Não devemos ter medo de ir muito longe, pois a verdade está ainda além”. Ele penou anos a fio, antes da descoberta dos antibióticos. Quando sentiu a presença da morte, disse à criada Celeste: “Você sabe que ela chegou e não me diz. Ela é grande, enorme. É muito grande e escura, está toda de preto, é feia, me apavora!” Mas, antes e depois (e sempre) todas as flores dos parques e jardins, as ninfas e aldeãs, os castelos e as casinhas, as cidades e seus arredores, tudo toma alento na obra dele, ganha corpo e espírito, tudo a fluir levemente e ao mesmo tempo solidamente de uma xícara de chá com as rosquinhas (as madeleines, que felizmente encontrei e degustei em muitas cidades da Europa, numa viagem com minha esposa, em 2006) umedecidas no chá das eternas essências. 

Bibliografia: - Idéias e Livros, Jornal do Brasil, 04/12/1993. - Ilustrada, Folha de São Paulo, 23/11/2003. - Suplemento Literário do Minas Gerais, 10/10/1971. - Letras, Folha de São Paulo, 17/08/1991. - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. de Mário Quintana, 14ª. edição, Editora Globo. - O Caminho de Guermantes, trad. de Mário Quintana , idem, 1981. - A Prisioneira, trad. de Fernando Py, Ediouro, 1994. - A Fugitiva, trad. de Fernando Py, 1995. - O Tempo Recuperado, trad. de Fernando Py, Ediouro, 1995.