O ESPÍRITO DO ATEISMO
Com tantos predicados coroando a harmonia do nosso sistema planetário, como duvidar ou negar que um Criador todo poderoso e todo misterioso não esteja possuído dos direitos de autoria de todo esse manancial? E por que não chamá-lo de Deus, mesmo subtraindo de sua propalada inteireza tantos preconceitos duvidosos e controvertidos? Perguntas afloradas durante a atenciosa leitura do livro “O Espírito do Ateísmo”, de André Comte-Sponville (autor que eu não conhecia e que um amigo de São Paulo apresentou-me, afortunadamente). O vocábulo “ateu” no sentido de “atoa” é logo descartado pelo criterioso e ajuizado filósofo, portador de riquíssima bibliografia na área especulativa dos temas mais fundamentais da cultura humana. O impacto da leitura leva-me à tentativa de escrever este texto antes mesmo de chegar à metade do conjunto de suas páginas, deixando-me à vontade para voltar ao assunto depois. Estudando “a possibilidade de se viver bem sem a religião”, ele confere “o que há de comum entre o xamanismo e o budismo, entre o animismo e o judaismo, entre o taoismo e o islã, entre o confucionismo e o cristianismo” e conclui ser “um equívoco utilizar a mesma palavra (religião) em todos esses casos”, acrescentando que “seus adeptos formam não tanto igrejas quanto escolas de vida ou de sabedoria”. Etimologicamente, segundo suas palavras, “uma religião pertence menos à COMUNHÃO (que liga) do que ao que chama de FIDELIDADE (que recolhe e lê). Os valores da FIDELIDADE nasceram, historicamente, nas grandes religiões (o judaismo, o cristianismo e o islamismo), “mas isso não prova que os valores (moral, fidelidade, comunhão) necessitem de um Deus para subsistir. Nós é que precisamos deles para subsistir de uma maneira que nos pareça humanamente aceitável”. O autor acredita (plausivelmente) que “a fé é uma crença” e que a “fidelidade é mais um apego, um comprometimento, um reconhecimento. A fé tem por objeto um ou mais deuses; a fidelidade tem os valores, uma história, uma comunidade. A fé é do âmbito do imaginário ou da graça; a fidelidade, da memória e da vontade”. Na página trinta ele diz que não precisamos acreditar em Deus para acreditar que “a sinceridade é melhor do que a mentira, que a coragem é melhor do que a covardia, que a generosidade é melhor do que o egoísmo, que a doçura e a compaixão são melhores do que a violência e a crueldade, que a justiça é melhor do que a injustiça e que o amor é melhor que o ódio... Quem acredita em Deus, reconhece em Deus esses valores, reconhece Deus neles”. Pois, só por não crer mais no Deus tradicional, no onipotente, onipresente, todo poderoso, alguém tem de se tornar um covarde, um hipócrita, um canalha? Assim ele desmonta o famoso postulado de um personagem de Dostoievski, segundo o qual “se Deus não existe, tudo é permitido”. Claro que não é assim, o autor afirma na página 46: “a moral é autônoma ou não é moral (Kant já mostrava)”. Quem se impede de sair roubando e matando só pelo medo da sanção divina, é despido de moralidade, está meramente imbuído de “prudência, medo do policial divino, egoísmo”. E quanto a quem faz o bem só para se salvar, não faz o bem, mas sim algo por interesse e não por dever ou amor. Hipocrisia, no caso, até mesmo pecaminosa, eu diria. O personagem do genial autor russo é um inculto (leiam o romance “Os Irmãos Karamazov”, para confirmar): se fosse um personagem culto saberia que a perda da fé não é a perda da moral. Para se fazer o bem no mundo, a religião não basta, nem o ateísmo, mas ajudam. “Se a palavra religião é entendida em seu sentido ocidental e restrito, como a crença num Deus pessoal e criador, então a questão está historicamente resolvida: uma sociedade pode viver sem religião. A prova? O confucionismo, o taoísmo, o budismo, que inspiraram imensas sociedades, admiráveis civilizações. O termo latino “religío” vem do verbo “religare”, o que significa amarrar, ligar bem”. (...) Abro aqui um parêntesis para lembrar a famosa frase de Karl Marx: “a religião é o coração de um mundo sem coração”. Frase um tanto descabida no contexto socialista do chamado materialismo histórico que, assim, tentava apropriar-se meramente do lado místico da propagação de toda ideologia que vise doutrinar as massas populacionais. Marx já é uma página virada, mas a problemática existencial ainda não. “Nos diferentes monoteísmos” (o filósofo francês continua em nossa citação), “as pessoas são ligadas entre si, horizontalmente, por terem a sensação de estarem ligadas a Deus, verticalmente”. Estou ainda na página 58 de um livro (quê livro!) de 191 páginas. Comecei a leitura, preliminarmente refutando a idéia corrente de um Deus lá em cima tomando conta de todos os passos de todos os seres vivos da terra e também de todo o universo. Sou leigo em filosofia e em teologia. Sou um leitor das coisas da vida e do mundo. Sinto-me, mesmo assim, podado nas restrições intelectuais, propenso a preferir a fidelidade nos valores do que a fé dos mistérios. Deus existe, sim, é inegável. Mas não como rastreador dos passos de todos os seres do mundo, para avaliar e distribuir as venturas e desventuras, as bênçãos e castigos de conformidade com o merecimento de cada um. Isso (quando foge da alçada da conscientização individual) é prerrogativa da chamada classe dirigente (que às vezes dirige só a favor de si mesma) das sociedades que não se firmam num estágio de possível (utópica?) felicidade. Temos muitas páginas adiante, no livro; muitos achados e perdidos na vida. Prossigamos na busca.
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