segunda-feira, setembro 01, 2008

O MERGULHO E O VÔO DE PEDRO NAVA (*)

À Inês Belém Barreto, que amavelmente presenteou-me com os cinco volumes inspiradores deste texto.

Pedro Nava, homem de intensa e profunda vida interior, de uma interioridade acionada e comprometida dia e noite no amor da família, no relacionamento dos amigos, na aplicação dos estudos, na libação dos eflúvios mentais. Criança conscienciosa e introspectiva, a captar e guardar imagens e idéias das futuras lembranças; adolescente da mesma têmpera, ávido de vivências, autocedente de ocasionais e gratíssimas licenças prazerosas; jovem, ainda e sempre afoito e estudioso, agora enturmado numa geração de lívidos e tacanhos iconoclastas, verdes intelectuais futuristas e nefelibatas, geração (faixa etária) que marcou época na Belo Horizonte da segunda e terceira décadas do século 20: as estrepolias para chocar a burguesia e contestar as estruturas, interligadas ao gosto e ao esforço de querer mudar a face dos acontecimentos numa iniciação literária que já partia do meio e não do início da aprendizagem, no ponto em que a questão principal era criar e conduzir as armas e bagagens para uma radical modificação de formas e conteúdos que pudessem consagrar uma cultura contextualizada em seu tempo e em seu espaço. Nada de paus mandados ao sabor do vento e da tempestade, mas sim a instauração social de uma humanidade mais íntegra, mais bela e melhor em todos os sentidos. E mancomunado e imbuído de um realismo por assim dizer utópico, ele se manteve vida afora, estrepando-se nos espinhos de rebaixados empregos de favor. O que podia fazer? Era órfão de pai e portanto arrimo de família. Depois de formado e graduado enfrentou os obstáculos de sobrevivência na selva do arrivismo empregatício dos cargos e salários nas ingratas funções de profissional honesto e laborioso, competente e produtivo. Só muito depois é que assumiu a grave incumbência das belas letras, encaminhando-se decididamente com o cabedal, o arrojo e o bom gosto do tratamento lingüístico de seu mergulho e de seu vôo nos muros e vãos do tempo pretérito. Pedro Nava, poeta bissexto (e mesmo assim antológico), pintor, professor, clínico geral e reumatologista famoso, administrador de serviços de saúde pública, foi também escritor do nível de celebridades nacionais como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Antônio Cândido, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa. Vemos nele e nos outros prosadores o caprichoso e descortinador andamento polifônico das exímias prospecções, das lídimas aberturas dos labirintos e dos horizontes das grandes e belas paisagens, das grandes e belas almas. Nele, talvez mais do que nos outros, aflora no mesmo invólucro confessional o desnudamento íntimo das relações familiares no leque das dimensões genéticas e comportamentais, a confabulação em sucessivas gradações e patotas ao longo de praticamente todo o século vinte, que é por assim dizer, o nosso século. O crítico e historiador Francisco Iglesias foi enfático e veraz quando saudou a publicação em 1972 de “Baú de Ossos”, primeiro livro da série de seis de suas memórias, série que totaliza cerca de 2.670 páginas compactas de escassos parágrafos e de longos períodos, como os dos livros ficcionais de Marcel Proust, autor de obra de igual fôlego-volume-peso-brilho e importância na história do pensamento e da sensibilidade de nosso tempo. Não quero dizer que Nava é uma espécie de Proust brasileiro. As parecenças são muitas, as diferenças também. Ambos buscaram e encontraram e recuperaram o tempo passado e cada um dos livros deles é para nós uma espécie de concerto sinfônico, uma natureza viva, um rosto de musa, um painel de gestos e semblantes, uma prova dos milagres da mente humana. Proust era doente e Nava, médico: fato que os aproxima na beira do mesmo poço das incongruências e dos discernimentos. Um fez da moléstia a bandeira salutar das glórias sentimentais e intelectuais, o outro fez da medicina uma espécie de purgatório em equilíbrio entre a terra e o céu, a vida e a morte.O francês era talvez mais refinado? O brasileiro mais atilado? Ambos eram dotados de perspicácia , paciência e sobretudo de uma forma de sobriedade na prodigalidade. Páginas e páginas trabalhadas a respeito do que seria o mero detalhe de um dado tema e que se torna nas mãos deles num mapa desdobrado, enxameado de outros detalhes que podem ser consecutivamente desdobrados e transfigurados em menções temáticas de outras representações e envergaduras, confluindo na assertiva de que no campo da pesquisa e da expressão não há nada pequeno nem desimportante. O pequeno e o grande revezam-se em pólos de idêntico interesse ao longo das páginas de cada livro. Proust é francês e anterior, Nava é brasileiro e posterior. Se o primeiro influenciou o segundo, há de se atentar na permeabilidade retroativa: depois de ler Nava, a leitura de Proust ganha em interesse e ilustração. Iglésias foi enfático e veraz ao posicionar Nava desde sua estréia em livro no primeiro plano da literatura brasileira. Patamar a que faz jus graças às habilidades expressionais de narrar e descrever (de falar e de ver, escrevendo). Nele estão o dom e o talento de extrair da realidade o que preexiste na imaginação: visagens e imagens ao mesmo tempo impressionistas e expressionistas. Tudo (os grãos da ciência, da história, da inventividade) da vida sofrida e gozada na mesma cozinha da mais legítima poesia vestida e revestida de prosa torrencial. Filho de José Pedro da Silva Nava (do Ceará) e de Diva Mariana Jaguaribe (de Minas). Descendente pelo lado paterno de Francisco Nava (Itália), de Hipólito Pamplona casado com Brígida Leonarda da Silva, e do lado materno de Joaquim José Nogueira Jaguaribe (Ceará ) e Maria Pinto Coelho da Cunha (Minas). É autor dos livros de memórias Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo-das-Trevas (lidos por mim) e Círio Perfeito (que ainda não li). Partindo de princípio genealógico de René Martial, segundo o qual uma vaca branca que entra numa casa, ali reaparecerá mesmo que passem cem anos, Pedra Nava abre o baú de ossos, infla o balão cativo, sabendo de antemão que lembrar e esquecer são páginas lidas e relidas do livro de memórias: a presença da avó na cadeira de balanço do pai deitado entre flores mortas do esquife; as mulheres mais peregrinamente belas que já se viu – e a familiar ingratidão e os fatais momentos de infortúnio. O mergulho pesado e sufocante das lembranças amargas e deprimentes, o vôo leve e airoso das lembranças prazerosas e instigantes: todo ser humano tem sua história de retorno do oprimido, é sempre o filho pródigo ou mesmo estóico a purgar, até instintivamente, nas confusões da insônia e nos escaninhos da lucidez, o desfile em videoteipe das vivências recalcadas no olvido ilusório, ou renitentes na argúcia da insolente repetitividade. O inventário familiar alonga-se nos horizontes do tempo, aprofunda-se nas raízes genéticas, eleva-se na infinidade de galhos-folhas-sementes que remontam na sucessão avoenga das gerações e dos caminhos e percalços na ascendência familiar de cada um de nós, assim até chegar a Adão e Eva, interminável sucessão, regressiva e progressiva de muitos gênesis e dilúvios – da limpa originalidade à sujeira do apocalipse. Já faz tempo que vigora nos anais da literatura oral o dito popular, “recordar é sofrer duas vezes”. Os trovadores dos jogos florais fazem coro e lindamente cantam o transe da reciprocidade dor/prazer: “saudade, palavra doce/ que traduz tanto amargor./ Saudade é como se fosse/ espinho cheirando a flor” – trova de autor por mim desconhecido, que há décadas ressoa em muitos desses rincões dos nossos brasis. E tem também a de Aldemar Tavares: Para matar saudades/ em ânsias sai correndo./ E eu que fui matar saudades/ de saudades voltei morrendo”, que registra a duplicidade mnemônica: toda vez que um chamamento do passado nos atrai e embevece, a nossa incursão acaba derrapando na curva ou na ladeira da contradição, pois depois de reviver a delícia visionária das moças belamente peregrinas,enfrentamos a contragosto o esquife do pai deitado ente flores roxas no velório da sala de visitas. Dura visão, agora transformada em lembrança para o resto da vida. Eis o que ele diz: “Os dias seguintes da morte do Pai aparecem nas minhas recordações como uma seqüência cujas cenas foram, umas, indelevelmente gravadas e outras, sovertidas em espessa treva. Como a visão das que o nadador bracejando em mar bravo que ora tudo abarca da crista da onda, ora nada vislumbra coberto pelo roldão. Mergulhando e emergindo.... Ali estava saindo mutilado e reduzido a um pedaço de mim mesmo, como o paciente anestesiado que não sente quando amputam sua mão. Depois a cicatriz, mas a mão perdida é dor permanente e renovada, cada vez que a intenção de um gesto não se pode completar”. A impressão que nos fica é que a vida é feita mais de tristeza que de alegria, mais de enterros que de nascimentos. Em São Luís do Maranhão, terra de seu avô paterno, tudo resplandescia, até os sepultamentos, que eram festivos e buliçosos. O féretro ia pelas ruas em cortejo para os velórios nas casas dos amigos, que disputavam à hospedagem em câmara-ardente do pobre morto. Assim uma ou duas horas das vinte e quatro horas que lhe restavam na superfície da terra, ele fazia seu passeio derradeiro, a errar de porta em porta na exuberante cidade. Morte certa e hora incerta, ele cita Aquilino Ribeiro, ao ver e rever muitas vezes no móvel da casa um oratório com o crucifixo e as imagens e as flores de pano, tudo sobre um baú fechado que encimava um consolo amarelo. Uma lamparina eternamente acesa no meio das velas brancas que as tias substituíam, desfiando seus rosários. Todo o ambiente solene, o tom sombrio, o cheiro de cera e de sacristia, indicavam que no baú do oratório jaziam os ossos da prima Alice, falecida em Juiz de Fora. “Coubera a meu pai”, ele diz, “exumá-los, lavá-los, trazê-los para o Rio e entregar à irmã a bagagem terrível”. Outro velório de anjinho que ele não recalca é o do mulatinho filho da ama-de-leite de sua irmã, que viviam (os dois) em sua casa. O pai promoveu um velório de parente, o defuntinho na sala de visitas no caixão de rosa e prata, uma túnica do Menino Jesus, “sapatinhos de cetim pousados num bolo de algodão afeiçoado em nuvem e cheio de estrelas douradas”. Num momento de distração dos adultos, o menino Pedro Nava puxou-o pela mãozinha para desengrenar os dedos que duramente apontavam para o alto. Aterrado ficou ao sentir a rigidez coagulada, “o frio da carne impassível, a pálpebra de cera que ao abrir não fechou sobre o olho coberto de cinza, tudo como uma espécie de resistência, teimosia e hostilidade”. Todos os velórios da família eram solenes e respeitosos, menos o da avó Inhá Luisa, repleto de imprecações alusivas aos parentes que viveram de mal com ela. Um dos genros tinha até proibido a esposa de comparecer. “No saimento para a sepultura, as filhas desmandadas atracavam-se no caixão, faziam voltar, abrir, para beijar mais e despedir outra vez. Um velório de vida e morte que daria panos para as mangas de Freud”. E até mesmo um certo humor fúnebre, se é que isso existe, não deixa de comparecer em suas páginas por assim dizer enlutadas, quando ele conta a história da Prima Odília, “uma ave em flor, a graça da beleza em pessoa”. Indo com a família na estação de águas em Poços de Caldas, ela cativou os moços da cidade que se rivalizavam na oferenda de seus corações. Ela talvez ativesse preferido o dono da funerária da cidade, “não fosse o sinistro da profissão”. Mas ele insistiu, galenteou e até arriscou o humor negro, afirmando que lhe daria o mais lindo caixão no dia do aniversário dela. Dito e feito, os anjos disseram amém e ela amanheceu morta no justo dia do natalício. O moço cumpriu a promessa: desmanchou os armários de cedro, de jacarandá, de pau-cetim e caprichou no artesanato com esquife com alças de prata, alcochoado de veludo e forrado de crepe-da-china branco. E assim deitada nesse leito ela foi enterrar-se no Rio de Janeiro, “sorrindo dentro da nuvem imaculada dos filós e dos brocados de noiva perenal”. Médico e escritor, Nava era guloso, incontentável. Via, lia, sentia, comia, digeria, insoniava, nada perdia do que estivesse ao alcance dos sentidos. Ia colando cada minuto no seu Livro de Horas, as impressões e expressões, os caracteres, as fisionomias, os atributos agregados, as visões gravadas na memória mais atenta e nos arquivos de aço implacáveis das futuras recordações. O estilo ciclópico, lapidar e consecutivo, a corrente de um rio a passar nas curvas represantes e nas dadivosas corredeiras e nas abrangentes esplanadas. O olhar que passa sem se deter e sem omitir. Nada propunha, nada enviesava nem esconjurava: apreendia e refletia os fluidos e as concreções dos mínimos detalhes da biodiversidade, dos apólogos visuais dos descortinados e dos esbarrancados, da alacridade dos vegetais ao nebuloso limo das artérias percebidas por sua lúcida atenção, criteriosa e lúdica. Assim a fluência fluvial jamais esvazia, segue ágil na natural continuidade sem jamais recair na fatigante escadaria dos interregnos e das escarpas. As curvas se aplainam nos murmúrios do rio na fina compactuação do jorro vocabular das páginas do livro empilhadas e seqüenciadas sem as pausas e os refrescos dos parágrafos. A viagem segue de barranco a barranco e assim chegamos às dimensões esféricas de um mar, um mar de beiradas móveis, uma feira de amostras das consideráveis vivências palpitantes, o filtro fotográfico da linguagem a flagrar e revelar tudo na hora e tudo já retocado como o espetáculo da vida debulhada e rejuntada nas artimanhas do trabalhado arranjo das palavras. A certa altura de um de seus livros, ele conta que um viciado em jogo de azar jactanciava no círculo de suas relações que sabia o grande segredo da religião, que não podia revelar a ninguém sob pena de quebrar o segredo. Mas um dia, depois de perder todo o dinheiro, a casa, o carro, o cartão de crédito, arriscou numa última cartada o seu decantado segredo. E perdeu. E teve que contar: o segredo da religião é que não existe purgatório, isso foi inventado para engambelar os crédulos. O certo mesmo é a simples dualidade: céu e inferno. Contando o segredo do jogador, Nava revela o que para ele é o segredo da Medicina: não existe cura para nenhuma doença. Numa cirurgia, ele acrescenta, fica a sensível ausência do que tirou do corpo. Nos outros casos há apenas uma contemporização, um atenuante, um paliativo-adiamento do recrudescimento doentio. A verdade é triste, mas é a verdade, - e como a beleza, no dizer do poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos, “é triste porque cria a inquietação: Lamentai-vos da vida, chorai a beleza. / No caminho que as trevas confundem / vêde o sonho: é um incêndio de rosas”. Nava nunca se definia literariamente, com a desculpa “na verdade eu sou é médico”. Fez voto e fé no estudo e na formação profissional em homenagem e por amor ao pai, médico que morreu tentando salvar vidas. Almejava fazer da medicina algo mais viável socialmente, mais ao alcance de todos que dela necessitasse. Malgrado o saudável otimismo, suas experiências, dificuldades e decepções transparecem ao longo das paginas, com as provas de ônus constante e de abgnado sacrifício, a começar pelo óbito do pai: “O Dr. Duarte de Abreu não conseguiu passar na Câmara (do Rio) um projeto de benefício para a viúva e filhos de um funcionário morto no trabalho. Estávamos a nada, mão na frente e outra atrás”, ele lamenta. Foi uma vida amarga, a começar pelos duros anos na Capital Mineira, então em ebulição construtivista, a enfrentar o clima quente e árido das rixas, rivalidades e arrivismos dos professores e colegas. Suas peripécias financeiras e morais em chão de fero contrastavam com os sonhos do adolescente, tão diferentes na clareza e na fluência. Fica conhecendo o lado ruim das relações humanas, o ambiente vicioso do funcionalismo público nas autarquias e casas de saúde onde enfrentava primeiro o desgaste burocrático e depois o duplo sofrimento que Miguel Couto constatara no exercício da medicina: o dos próprios males e os dos clientes. Coitados, ele dizia, “em dois tempos viro-os pelo avesso, adivinho-lhes as baldas, negaças, as falsas franquezas” – é assim que fica do outro lado da mesa do consultório: conhecendo num átimo o homem ou a mulher como as palmas das mãos. Levando a sério o juramento hipocrático e a série de obrigações que envolvem o fluir da vida e o risco da morte, ele às vezes persignava-se para queixar dos colegas relapsos e arrivistas, o médico-marrom (apreciação depreciativa também atribuída a certos profissionais do jornalismo, da política, do policiamento, da jurisprudência). Sem jamais alheiar-se da crueza de suas jornadas de trabalho, a começar pelas aulas na sala de dissecções, os tanques de cadáveres entupidos de formol, expostos em míseras vísceras, partes alquebradas, esclerosadas, esqueléticas. E cinqüenta e cinco anos depois, ele deplora o castigo da insônia, a relembrar indefinidamente aquela fase do estudo de anatomia, diante do horror da morte mostrando o que é a vida, a feiúra mostrando a posteriori o que era a beleza, tudo no mais estrito, nu e cru realismo, como ele diz. O que entendemos é que a carne é débil e que a saúde deve ser aproveitada pelo amor da vida antes que seja tarde, porque só o espírito paira no tanque das dissecções. Transluz também na obra de Pedro Nava a mesclação, o ajuntamento e a escoimação de uma linguagem transitiva de quem está ora voando, ora mergulhando na articulação temática, em extensos parágrafos, nos quais reúne, separa e aglutina um vocabulário mais precioso, atendendo à revoada de nuances morfológicas sob o prisma da sensação e não apenas do raciocínio, da metáfora e não da literalidade, resultando a tônica encantatória do arranjo, a plumagem e o cerne do contexto literário. Lembra Marguerite Youcenar, quando ela fala na imagem que atravessa anos e anos e vem morar num poema como filho pródigo que retorna ao lar paterno – pois todo pensamento mais profundo continua em parte secreto, por falta de palavras para exprimi-lo e é assim que muitas coisas permanecem escondidas de nós. E quem vem das fontes da vida tem que passar nos rios do léxico para melhormente se aparelhar, como Nava tão bem fez. E não apenas ele, é claro. Lembro-me de James Joyce e de Guimarães Rosa. E de Marcel Proust, já cotejado neste trabalho. Em Proust a sensualidade é mais compassiva, negligente, mais dosada esteticamente; a libido paira, areja, não penetra nem incrusta, é subjetiva, inefável, silenciosa como uma flor separada das outras. Em Nava é sôfrega e picante, não se contém na mera divagação, quer sair para conhecer a fundo os efeitos, sem atinar para as causas, perdas e danos. Mas de um a outro a linguagem referencial dos comportamentos pessoais mudam de água para vinho ou vice-versa. Nas longas, intrincadas e deliciosas narrativas amorosas do francês, a prática sexual fica subentendida como um curioso pano de fundo, enquanto que nas também longas, intrincadas e deliciosas narrativas do brasileiro a prática sexual assume o primeiro plano da linguagem direta, reluzente, explícita e carregada de adendos e sugestões. E é assim que em ambos, os sonhos e realidades do amor, impregnados de imaginação, entram na atmosfera e nos requisitos da transcendência, ou seja, da arte. Para amenizar a densidade dos mergulhos nas águas turvas de violentas colisões, o escritor emprega de vez em quando os antolhos do lirismo das fugidias imagens femininas que ao longo de suas épicas escaramuças adoçam seu coração, despertam seus instintos, acionam seus vínculos subconscientes aos instantâneos do amor e da vida em sã consciência. Embriagado de lembranças, ele revê a coleção de mulheres peregrinamente belas que refrescava seu ânimo às vezes atônito, embelezava sua paisagem às vezes atravancada, agraciava seus olhos embargados. A divinal fascinação feminina, uma vez na vida e outra na morte, não faz mal a ninguém, só faz bem tanto ao homem comum como ao excepcional. A conjugação dos verbos irregulares nas falas simbólico-esporádicas, as plumas e veludos, as corolas, umbelas, tulipas, rosas: como era linda a Dona Clotilde! Ele exclamava, embevecido, em 1919, no pátio do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro: a exalação de cores e malvas, aljôfares, âmbares, pérolas oceânicas, trevos de folhas de todas as estações do ano. Assim ele segue discorrendo, passando por outras beldades ao longo do tempo. A “fruta mais doce e pulposa, crisocárpica, deicente, bivalva e aveludada”, chamava-se Laura, uma mulata alforriada pelo capitão Luís da Cunha: ela quando ficava nua luzia de um lado como um bronze polido, enquanto o outro lado, todo negro, era comido pela treva. “E tudo esverdeava em primavera”. Já a Rosa, escravinha da Vó Inhá Luíza, não era preta de todo, uma branca escurecida de olhos ambarinos, tirantes a verde, que pareciam chorar de tanto brilhar: “ah Rosa nas trevas, púrpura e bela, desfolhada na aridez sepulcral de nossos corações, rosa unicamente nominativa, jamais declinável”. E a Tia Eugênia no alto da escada? Seus modos de deusa ambulante. “Ela e a Prima Mimi foram as mulheres mais peregrinamente belas em que já pus meus olhos, antes de conhecer as Primas Eponina e Cotinha, outros eternos encantos da infância”. Rosalina Coelho Lisboa, viúva que ainda não tinha vinte anos de idade: “A brancura transparente e permeável lembrando a cerusa ortorrômbica, a iridência das conchas mais alvas e o translúcido das opalinas mais puras”. Em Belo Horizonte, a lavadeira e bela Cecília negra, paquerada de fio a pavio desde o primeiro instante em que a viu. Aceitando o desejo dele, ela um dia entregou-lhe um bilhete junto da roupa lavada, que falava assim: “Preciso estar cocê. Amor perene fidelidade perena da tua Cessilia”. O que aconteceu depois foi uma trapalhada, uma das venturas acenadas e goradas da juventude. E depois, num carnaval carioca, a Leopoldina, de tirolesa, a longa saia rodada de seda verde num cálice do qual emergiam a flor de seu busto de menina-e-moça. “Depois sualma habitou a minha e a envultou: estranha estrela fugitiva que parecia perto quando estava mais longe”. E há uma enigmática Persombra (pseudônimo forjado pelo próprio Nava?) da Paixão. Tantos adjetivos neologísticos, tantos semblantes miméticos ao longo do dia e dos noturnos de “mármore turcino, sal de cobre, genciana, íris, pervinca e violeta nos noturnos e dilúculos”. E no magnífico desfile das musas do parnaso dos anos dourados da vida surge outra prima, a Carminda, sobrehumana, as mechas finas de seus cabelos ondeados caiam adiante das orelhas em espirais a lembrarem cachos de uvas. E outras ninfas e sílfides, cabrochas, brotinhos, as moças em flor como a Ronaísa, princesa das mil e uma noites do ponto abissal que se opõe ao zênite. O erotismo é uma pesquisa permanente, lenta, gradual, paciente, dolorida e sempre insatisfeita, que pertence a todos os sentidos e a cada milímetro quadrado do corpo – assim ele diz em tom de intróito à glorificação da libido da cabeça aos pés das mulheres peregrinamente belas dos últimos anos da década de vinte do século vinte. Pedro Nava, escritor que debulhou em caracteres tipográficos sua vida com a tinta do sangue, por assim dizer. Viveu sem perder uma gota da taça, um minuto do relógio. Vivia e revivia, ia aos lugares e vinha das coisas e das pessoas e voltava para confirmar e reproduzir, para conferir um número de casa numa rua antiga. Para ele uma casa, uma rua, uma cidade, tudo era vívido como um personagem de carne e osso, sangue e alma. Ia no carro da memória, voltava na máquina de escrever, apalpando com os olhos os mínimos detalhes numa percuciência, numa afetividade só dele, sabendo que o segundo olhar deve atentar mais para o que tinha sido apenas relanceado. Recompunha na tranqüilidade a emoção ampliada, antes amada e sofrida no chofre do redemoinho e agora revivida nos requintes da memória sob controle próximo e remoto. A memória é um livro de muitas folhas, é uma arvore de muitas páginas, de muitas cores e dores, o limo e o palimpsesto, a fratura exposta, o trauma insolúvel purgando interminavelmente, o sentimento de culpa roendo por dentro, remoendo a clavícula, o tendão e o globo ocular, a demasia escarlate do opróbio removível só para as partes de dentro, a cinza ainda em brasa, a obturação do dente mordendo de raiva o beijo desejado e nunca atendido das mulheres de rendas de seda, das íntimas rendas de sedas escorregadias. Toda a complacência humana, o denodo profissional como médico acima de tudo, a vinculação parental com os ascendentes, descendentes, colaterais, toda a paixão humana em suas extremidades e miolos de sensualidade aderente e de horror aceitável, todo o massudo compêndio das decepções ao lado da ínfima plaqueta do sincero congraçamento, tudo em todo tempo de seus belos anos de criativa e exaustiva maturidade, tudo floresce em sua obra literária porque participa da envolvente plêiade do primeiro plano da inteligência e da arte de nosso País, tudo isso ao vivo e em cores até ultimar seus dias da vida física e legar-nos o conjunto exemplar de sua luta sem trégua que resultou, afinal de contas, na obra inteiriça, consistente, fecunda, luminosa, publicamente legível. E de Carlos Drummond de Andrade, seu amigo e companheiro desde a juventude, passando pela maturidade e senectude, vem a certeza mais certa: ”a crônica individual de Pedro Nava se converte no panorama social de várias regiões brasileiras, pois o itinerário do sangue o faz remontar ao Nordeste e deter-se em terra carioca, antes de aflorar em Minas como produto de entrelaçamento de famílias”. 

BIBLIOGRAFIA: 1 – Obras de Pedro Nava: - Baú de Ossos – Ateliê Editorial, São Paulo, SP 2002. - Balão Cativo, mesma Editora, 2000. - Chão de Ferro, mesma Editora, 2001. - Beira-Mar, mesma Editora, 2003. - Galo-das-Trevas, mesma Editora, 2003. 2 – Os Sapatos de Orfeu, Biografia de Carlos Drummond de Andrade, de José Maria Cançado – Scritta Editorial, S. Paulo, 1993. 3 – Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcemar, tradução de Martha Calderaro, Editora Recorda, Rio de Janeiro, 1974. 4 – Suplemento Literário do jornal “Minas Gerais”, Ano VIII, n. 343, de 24/03/1973, Belo Horizonte, MG. 5 – Caderno “mais!” do jornal Folha de São Paulo, de 01/06/2003. 

 (*) Comunicação apresentada no Primeiro Congresso FUNEDI-UEMG de Pós-Graduação e Pesquisa, Divinópolis, 2004.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Lázaro, sempre imprimo seus post, para lê-los com detida atenção em casa. Como eu digo em meu blg, não se deve ter medo dos parágrafos; há sempre um ponto final logo ali.

Simplesmente maravilhoso este sobre Pedro Nava. VocÊ tem uma visão muito especial, acurada mesmo, da forma de alcançar a profundiade das palavras e do que o autor "não escreveu". Ótimo mesmo! Essa sua capacidade não é só técnica; você já nasceu especial. A faculdade apenas lhe deu um título, nada mais. Parabéns.

Agora vou "captirar" e imprimir seus post sobre Proust, e depois deixarei meu comentário. abração, e boa tarde. (Em Maringá neste momento o calor está insuportável, e muito seco. Paranaense não resiste a secas... é quase que um bicho d'água... ahahah)

1:15 PM  
Anonymous Anônimo said...

Concordo com Balestra que você deve publicar uma série de livros. Poderíamos colecionar todas suas análises sobre os grandes autores, entre os quais você se inclui.

4:31 PM  

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