segunda-feira, setembro 15, 2008

O ESPÍRITO DO ATEISMO II

Não é por ser ateu que o filósofo André Comte-Sonville deixa de ser um homem socialmente íntegro e individualmente saudável. Sua sociabilidade e sua individualidade não contradizem nem distanciam na vida real o cotidiano dos religiosos que cultuam a fé no Deus que incita o Bem contra o Mal. Ele professa a fidelidade aos princípios do amor entre os semelhantes e até entre os dessemelhantes: ele sabe que o amor está em viver e deixar viver e propugna e recomenda a vigência dos valores da Moralidade, da Liberdade e da Dignidade como paradigmas de uma humanidade menos preconceituosa e mais pacífica, menos atritante e mais feliz. “Se Deus existisse” (ele diz na página 92) “deveria ser muito mais visto e sentido” O “Deus absconditus”, o Deus que se esconde, não se justifica. “Se eu me escondesse de meus filhos”, ele diz, “eu simplesmente não existiria para eles. Se Deus existe, por que se esconde? Isso não seria brincar com a nossa angústia? Por que deixou que seu filho nascesse num estábulo entre a vaca e o burro e morresse pregado na cruz entre dois ladrões? Se é infinitamente bom por que criou esta humanidade infinitamente má? A própria existência do carnívoro é uma prova da inexistência de um Deus que, se pôde criar o universo e o homem, podia, igualmente, salvar uma criança e seu povo” (assim resumo o que em linhas gerais ele disse a partir da página supracitada). Segundo São Thomaz de Aquino (pagina 62), Cristo não teve fé nem esperança porque viu imperfeições nelas. No lugar de ambas elegeu o Amor, ou seja, a Caridade. Por que então (pergunta Sponville) excluir as fontes e os ápices? Jesus na Galiléia, Sócrates na Grécia, Buda na Índia, Lao-tsé e Confúcio na China: o espírito não tem pátria. A humanidade também não. O Amor, e não os milagres, é que constitui o essencial da mensagem de Cristo (pág. 65). Aí o autor cita os três graus da Crença Segundo Kant: a opinião, a fé e o saber. Opinião: Deus não existe; Fé: Deus existe; Saber: saber que não sabe se Deus existe ou se não existe. Incontáveis são as guerras e massacres de religião, todas em nome de Deus. Em nome Dele até assam seres vivos. O que tudo isso quer dizer? Quer dizer que “em se tratando de Deus, ninguém dispõe de um saber verdadeiro”. Se cada uma das partes contesta o Deus da outra, é sinal de negação de Deus em ambas (pág. 74). Não pode haver contradição entre a fidelidade (que vem da fé) e a liberdade espiritual – já pregava Montaigne. Minhas ilações: mesmo se Deus não existir, Ele merece nossas preces. Ele não importuna nem alegra o cientista. Mas a primazia da esperança é uma balela, já dizia Espinosa, que preferia “o alegre desespero do sabor amargo e tonificante”. “A ciência não sabe e nunca saberá responder se Deus existe ou não, nem como defini-Lo.” Essa impossibilidade, no entanto, não motiva a desistência de refletir sobre a questão, assim como também ela, a ciência, não sabe como devemos viver nem como devemos morrer – e mesmo assim sabemos que vivemos e que morreremos. “Ninguém escapa do mistério” (pág. 85) “de que há algo em vez de nada. Essa existência é intrinsecamente misteriosa, e esse mistério é irredutível, não por ser impenetrável, mas porque estamos dentro dele; não por ser obscuro, ao contrário, porque esse mistério é a própria luz”. Darwin vem ao caso: “a existência de Deus permanece pensável, tanto quanto – e não mais que – a sua inexistência”. O mundo, com as leis da natureza (pág. 100), é mais vasto, mais misterioso do que a Bíblia e o Corão. O silêncio diante do indizível (pág. 103) vale mais. Como refutar um silêncio? Como discutir um êxtase? O inefável não é um argumento. O silêncio não faz uma religião. Acredita-se que existem dois milhões de espécies vivas distintas vivendo no planeta, e que essa quantidade representa apenas um por cento da quantidade que já viveu no mesmo território – o que dá a entender que a espécie humana também pode estar entre as que não deu certo – e por isso pode desaparecer. Sabe-se também que as espécies não trocam genes, mesmo as das mesmas origens, como é o caso dos chipanzés em relação aos humanos. São ascendentes e descendentes historicamente, ou seja, compartilhados – mas não trocam genes. De minha parte, estando assim com o fluxo reflexivo imbricado nesta teia prospectiva, tendo nas mãos e nos olhos o importante livro do filósofo francês, voltarei ao assunto mais uma vez, com as minhas precárias ilações, que são palavras de intróito à aprendizagem da necessária laicidade, como norma comportamental diante do indiferentismo e da abominação, diante, ainda, da inveterada credulidade e do arraigado e famigerado fanatismo.