UMA DAS LEITURAS DE FRANZ KAFKA
A possível impossibilidade A impossível possibilidade As coisas de um modo geral estão prenhes de palavras Escondidas no íntimo do chão e da pedra e do ar No recesso de um futuro jardim Onde quer que seja que hoje ainda esteja batumado Ou descampado E que amanhã exibirá suas glicínias e orquídeas, Seus mimos de vênus que ainda não florescem ali Assim os encantos e as doçuras que ainda não existem Nas ásperas beiradas do rio serão os lindos cílios Dos olhos da água a jorrar fartamente Assim as palavras petrificadas congeladas pulverizadas ou mesmo escondidas, Insones ou dormindo nos muros e paredes, nos troncos De biloscas e nas folhas de alface ou no coração de veludo Da musa ocasional, É assim que é preciso ter a predisposição de Kafka O agudíssimo teclado farejador de Kafka A ventura dele de ver o depois antes de mais nada, De prelibar o antes depois de mais nada Antes de tudo e depois De encher as mãos de palavras mentais E esparramá-las na folha em branco Como sementes de margaridas É só virar a página e desfrutar a sombra. Sua literatura (sua vida?) É o verso, é o avesso de qualquer estereótipo até então Bolado pelos modistas de plantão, É a epígrafe adiada A carta embaralhada O casamento do pró e do contra O auge da lua de mel A gotejar dos grãos de pólen Nas férteis searas atávicas. A imagem errônea que se tinha dele, segundo Milan Kundera, de um santo silencioso que carecia de experiências e que desaparecia na sombra dos próprios movimentos, como diria Lao-Tsé. Uma espécie de “patrono dos neuróticos, deprimidos, anoréxicos, doentios, dos que desconfiam das granfinas ridículas e dos histéricos”. Um tanto ou quanto assexuado em suas incursões romanescas? Uma cena erótica pode ser descrita por ele, segundo Kundera, como o encontro de um guarda-chuva com uma máquina de costura: mas no romance “Castelo” ele é mais preciso e caprichoso: “a prolongação do coito se transforma na metáfora de uma fuga sob o céu da estranheza”. Era, sem dúvida, o inovador das abordagens, o mestre da arte de escrever diferente em seu tempo, que ainda soa um tanto diferente hoje em dia. “Sinto-me outra vez frio e sem alma; não resta mais que o amor senil pelo repouso completo”, assim diz ele, movendo “o pescoço de um lado para outro”. Amigo íntimo de Max Brod, que o protege dos percalços em vida e na posteridade, zelando seu nome e sua obra, ele amava o ambiente hebreu e musical de Praga, a música na leitura de Goethe, a finura especulativa de Kierkegaard, tendo em Thomas Mann o seu autor contemporâneo predileto. Minhas histórias são uma forma de fechar os olhos, ele diz, sempre a deixar cair algo quando vai pegar uma coisa. A moralidade mais pura, está só encontrei na aldeia natal, que hoje me chega dos tempos de antigamente, nós dizemos, repetindo suas palavras. A luz débil, porém penetrante, da música que constrói um muro em redor de mim, ele balbucia, e assim confinado sou diferente do que sou em liberdade, ele continua a dizer, até dizer textualmente: “o frustrado, com uma das mãos, afasta o desespero que seu destino lhe causa e a outra procura o que percebe sob os escombros”. Como é possível salvar o outro, se nós próprios nos perdemos?, ele continua a dizer. O tempo é a parte menos palpável da criação, ele diz o que sabíamos e que só agora nos ocorre como todo o mundo dele que agora reconhecemos como sendo também nosso. As imprecisões são precisas, as deformações são perfeitas, diria Walter Benjamim. A lúgubre e majestosa Praga dos castelos e palácios, que a escritora Pavla Lidmilová costumava mandar-me via postal em forma de momentos tão felizes, O enigmático cenário do Processo e da Metamorfose Aquela sensação de estar procurando o que não se perdeu O alheiamento entre duas afeições quase simultâneas A sombra da própria sombra inviabilizando As réstias solares Da diária noturnidade de um bom gosto (ânsia de perfeição) Hoje extinto na feira dos fazeres. A Praga que dele não desgruda: Um espaço interno do mundo, segundo Rilke? Um hospício metafísico, segundo Paul Kornfeld? Uma vetusta irrealidade, segundo Franz Werfel? As palavras que estão dentro ou detrás das paredes São as mesmas que estão dentro dos livros dele. Textos que são lidos como foram escritos: Com um pé atrás e outro na frente, ambos Temerosos de seguir ou voltar: Uma coisa medonha a pressionar? Um demo que atrai e rejeita ao mesmo tempo? A obscura divindade fica longe, muito longe Do obscuro crepitar dos fogareiros demoníacos. Kafka, atencioso menino, amargo rapaz Nunca temeu nem recusou qualquer obscuridade. Pois é, assim é a vida – a fome que antecede a saciedade, também a sucede. Satisfazer é o não-viver. Ansiosamente a procurar nos sonhos a moça desejada de seu coração. Não encontra. Quando acorda e sai para a rua vê o bando de moças e nenhuma delas é a que procura ansiosamente no sonho. Eu é que sou um sonho?, ele pensa. Uma das chaves para o melhor entendimento da obra de Kafka é dada por ele mesmo em Parábolas e Fragmentos, quando declara que fomos expulsos de um paraíso que não foi destruído (pois continuamos a viver nele) e condenados a morrer, mas não morremos, coletivamente, apenas perdemos a imortalidade - mas adquirimos o conhecimento da Árvore da Vida, o que não nos igualou a Deus, mas deu-nos a aptidão para tanto. Estou citando de memória, o que não faço com as palavras adiante, devidamente aspeadas: “o amor carnal eclipsa o amor celestial; não o conseguirá por si, mas, como traz em si inconscientemente o amor celestial, funde-se com ele”, - assim ele diz, sempre amável diante das naturais beatitudes. E ao lê-lo sentimos uma certa esquisitice, uma dúbia impressão que é só olhar para ver do lado de fora da janela a passagem lenta de uma franzida árvore silenciosa. De repente ele fala numa leitura pantanosa, da qual é difícil levantar os pés para dar um passo. Assim recalcando na vida a leitura difícil das páginas de palavras cruzadas (freudismo/marxismo/existencialismo), cada uma abrindo portas para lugares impenetráveis, de tal maneira que uma terapia introspectiva para chegar à clareza objetiva tinha que passar pela cerração angustiante das dúvidas amontoadas. Tinha que encolher, desidentificar, virar uma barata de tamanho descomunal? De tanto duvidar, ele passava a saber das coisas? Um saber fortuito a colher estrelas de dia e gatos pardos de noite? A claridade torna-se confusa e a pasmaceira frisa suas auréolas no intricado de cada texto que articula. De todas as interrogações nasce e apruma, enfim, o ser literário de sua lavra, lúcido e difuso ao mesmo tempo, como não podia deixar de ser. De 1912 a 1916 ele namora e fica noivo de Felícia Bauer e lhe escrevia cartas quase que diariamente – e nos intervalos da paixão epistolar ele tem um caso amoroso com Grete Bloch, origem de seu único filho, que no entanto falece logo depois de nascer. De 1920 a 1922 ele namora intensamente, também através de cartas, a casada Milena Jasenska, que depois morre num campo de concentração nazista. E de 1922 a 1924 liga-se, agora pessoalmente, a Dora Dymant, - quando falece num sanatório perto de Viena, aos 41 anos de idade. Sofria muito, vivia a queixar-se e a se maldizer, inferiorizando-se diante das amadas, às vezes com uma humildade até despudorada, como se cada uma fosse sua mãe e geneticamente responsável pelos padecimentos de uma doença grave e possessiva. E Milena, principalmente, se apresentava maternal e pacienciosa. Arguta e despreendida, benéfica protetora da literatura dele, que tanto enriqueceu a Literatura. Escrevia “como o passarinho que bica as migalhas..., tremendo, vigiando, espionando, com todas as penas eriçadas”. Milena também não era boa de saúde, a ponto dele troçar dela, dizendo que “em vez de vivermos juntos, temos que deitar juntos para morrer”. Mas tirar de si o amor dela era para ele difícil como transplantar uma árvore sem matá-la, ir fundo no buraco sem nele deitar raízes. Está sempre abúlico, cansado, fisicamente combalido, mentalmente inválido, literariamente nulo: assim ele pensa e chega a dizer que não ama a literatura, mas sim ao destino que ela lhe deu, ou seja, uma preocupação, um passatempo vital. A sensualidade quase sempre ausente em seus textos, o amor é mais passivo, a paixão é psíquica, nunca libidinal. Fica até difícil tracejar um quadro de moléstias no painel de sua ofegante, incisiva literatura. Ele parecia nem atentar para o corpo de Milena, não desfrutava de pulsões eróticas, mas sofria os constrangimentos, as contrafações neurológicas. É o que se deduz das cartas que,entretanto, não são partes intencionais de sua literatura. “só penso em minha enfermidade e em minha cura e ambas, em última instância, és tu, Milena”. Kafka é habilidoso não só em concatenar a disparidade dos pontos e contrapontos do enredo no absurdo ficcional como também em plasmar ali no entrecho a logicidade da linguagem ao mesmo tempo em que levanta dúvidas e arrola explicações. Numa das cartas à Milena, ele diz a respeito da insônia: “Quando se dorme mal, pergunta-se sem saber o quê, pois não dormir é perguntar. Se conseguimos uma resposta, dormiremos”. Em outra carta, ele escreve: “É muito difícil brincar de roda com fantasmas”. (Posso dizer, a propósito e entre parêntesis, que também levei uma vida de solteiro parecida, com algumas ressalvas, é claro: ele era enfermiço e algo ocioso; eu trabalhava tanto que não me sobrava tempo para adoecer; ele era criativo e minucioso, eu apenas mentalizava, não exprimia, e passava ao largo dos detalhes e desdobramentos das coisas; ele sonhava na seqüência da vivência, eu sonhava aleatoriamente, perdido de mim, sempre com seres e lugares que não conferiam com os da realidade cotidiana, íngreme e espinhosa. Em comum com ele posso ressaltar a sensação de que geralmente os lugares onde estou são parecidos com cemitérios, nos quais as lápides se erguem e os mortos jazem sonolentos. Na verdade (agora ele diz e cito de memória) a tumba que nos espera toda manhã ao lado da cama, toda aberta, com algumas flores murchadas, é o que temos a falar da vida, pois a convivência humana é sempre espinhosa, repleta de desentendimentos de toda ordem, alterações de ânimo, contrariedades, a própria benquerência comunicativa é entremeada de arrufos palavrosos, rusgas dialéticas, dissabores polêmicos. O ser humano não sabe ser feliz. Saberá um dia?). Mas dono da expressão segura e cabal, ele vai longe e a fundo na obscuridade mais cerrada, onde jazem ocultos e indormidos as inéditas verdades do desconhecimento – e logo-logo regressa com os louros que cabem em suas mãos. Quando sente que jamais poderá viver ao lado de Milena (ela casada, ele enfermo), sente que vive debaixo de si mesmo, como que debaixo de uma pesada cruz que tanto oprime-lhe o ventre, tendo assim que esforçar-se a fim de conseguir erguer um pouco a cabeça, erguendo um pouco “o cadáver que está sobre mim”. “O tormento é como um arado que sulca o sonho”, ele diz, lamentando pessoalmente e socialmente: “o indivíduo foi enviado na realidade como a pomba bíblica, não encontrou nenhum ramo verde e voltou a deslizar-se para dentro da arca escura”.
BIBLIOGRAFIA:
- Os Gênios Podem Escrever Cartas de Amor? – Marco Antônio de Menezes, Revista Status.
- O Processo Onírico, - Caderno “mais!, da Folha de S. Paulo de 16/02/2003.
- Franz Kafka Nunca Foi SANTO – Milan Kundera, Caderno “mais!” da Folha de S. Paulo de 03/01/1993.
- O Senhor do Castelo – Modesto Carone, Caderno “mais!” da Folha de S. Paulo de 23/10/2000.
- A Muralha da China, Contos e Máximas – Franz Kafka, tradução de autoria não mencionada, edição Nova Época Editorial Ltda. São Paulo, data também não indicada.
- Kafka – Parábolas e Fragmentos e Cartas a Milena – introdução e tradução de Geir Campos, Ediouro, Rio de Janeiro, sem data.
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