sábado, outubro 25, 2008

CANTO E DESENCANTO

Qualquer pesquisador das constantes comportamentais dos seres humanos quer saber quando, onde, como e porque um ato de amor pode transformar-se em pecado mortal. Melhor dizendo: quando o ativista de uma causa torna-se vítima dessa mesma causa. É uma contradição encontrável na história da civilização desde as eras mais remotas. Basta lembrar os lamentáveis episódios envolvendo Sócrates, Petrônio, Dostoievski, Soljenitsin, Issenin, Maiakovski, Graciliano Ramos e muitos outros ideólogos e escritores que viram a vó por uma greta num imóvel que eles mesmos ajudaram a levantar. No Brasil aconteceu principalmente com a escritora PAGU, sacrificada pelo totalitarismo de Prestes em concluio com a antropofagia de Oswald Andrade (escrevi e publiquei, aqui mesmo no Magazine, um texto a respeito). Agora, lendo o livro “MAIAKÓVSKI – Vida e Poesia”, Segunda Edição, Editora Martin Claret, São Paulo, SP, 2008, traduções de Emilio C. Guerra, Daniel Fresnot e Nicole A. Vilhena, o tema ocorre-me, novamente. Poeta loquaz no genérico de sua obra, quando se vale da poesia para fazer a propaganda do então (segunda década do século vinte) nascente comunismo soviético, e comedido nas pausas de sua verdadeira poesia (a de caráter propagandístico é uma contradição em termos, uma poesia anti-poética), ele viveu e sofreu, foi feliz e infeliz na pinguela da dualidade de seus fazeres intelectuais. A verdadeira, a legítima poesia transparece nos intervalos da militância favorável aos seus futuros algozes. As incorporações de estilos da fugaz oralidade que ilusoriamente o aproxima de Walt Whitman foi, certamente, o artifício que o alçou à decantada posição de arauto proselitista do marxismo-leninismo, que tanto dano veio causar à humanidade. Valendo-se da intenção poética para louvar um troço anti-poético, ele involuntariamente demonstra que a militância partidária entorpece a ombridade de uma desejável nobreza de caráter pessoal. Exemplo: “As baionetas/ cruzam o ar com brilho de relampagos./ Os marinheiros/ jogam bombas de mão/ como se fossem bolas inocentes”. Assim está na página 123. Na página 151 lê-se outra babozeira triunfante: “Camaradas:/ os trabalhadores/ e as tropas de cantão/ tomaram Shangai!” Assim o apologista das aleivosias chega a assinar mais esta heresia: “O poeta/ igual a uma puta de um rublo/ deita/ com qualquer palavra”. Está mais do que provado: todo poeta que tenta valer-se da poesia para elogiar e propagar a política, mais cedo ou mais tarde, arrepende. E muitas vezes paga com a própria vida suas boas intenções a favor do lado errado de uma porfia que implica numa sobrevivência humana mais salutar. Deixando de lado seu “vocabulário destituído de aura estética”, no afã de criar seus fajutos lemas revolucionários, temos que enaltecer o lado positivo de sua proeminência no chamado “Movimento Futurista”, que trabalhava na renovação da linguagem, tentando adequá-la ao confronto da imposição de uma nova ordem (o comunismo) sobre o secular estabelecimento das odiosas oligarquias. O sucesso de seu trabalho, contraditoriamente, foi o causador dos espinhosos conflitos com as hostes stalinistas, que utilizavam, acintosamente, o fogo no lugar da luz nas relações humanas, evidenciando a ineficácia da pretensa poesia política – o jogo dos dois valores que não se fundem, que são como água e óleo. Em muitas partes do livro os lídimos versos da boa poesia sobrepairam no redemoinho prosaico de suas enganadas preocupações na atroz militância. É fácil e gratificante pinçar a expressão de alguns de seus melhores momentos realmente poéticos: no prólogo de “A Flauta de Vértebras”: “A todos vós/ que já fostes ou que sois amados/ como um ícone guardado/ na gruta da alma/ qual um copo de vinho/ à mesa de um banquete/ ergo meu crânio repleto de versos”. No prólogo do outro livro “A Nuvem de Calças”, destacamos: “Na alma não tenho um só cabelo branco./ Nenhuma ternura senil em mim./ Atroando pelo mundo/ com voz potente vou/ garboso/ em meus vinte e dois anos”. E depois, do mesmo livro, na página 79: “Ante a tímida gente/ que vive na paz caseira/ ergue-se um halo de incêndio/ de mil olhos./ Ó meu derradeiro grito! Dize aos séculos futuros pelo menos isto:/ que eu estou em chamas”. E aqui e agora, já no século seguinte, tenho o prazer de ouvir a bela voz dele e de ver a verdadeira chama da vida de terna luz da vida dele. Maiakovski! 1893-1930.