sexta-feira, novembro 07, 2008

O RISCO DO BORDADO

Sou um leitor um tanto desencantado da velha poesia que ainda se escreve no país. Novos autores surgem em toda parte, quase todos abastecidos na estocagem precursora dos modernistas de 22 e dos concretistas de 45. Até quando nos servirão o mesmo prato, substituindo apenas os cozinheiros? A poesia em si é algo que existe nas funduras e nas alturas da vida e do mundo, em estado latente, como uma flor ou um pássaro, oferecida a quem pegar primeiro. Pode pegar à vontade porque sempre ficarão os exemplares para quem chegar depois: ela é inexaurível, infinitamente renovável.Só quem copia está diluindo, corrompendo, poluindo. ........................................................................................................................................... 

O pequeno e grande romance “O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO”, de J. D. Salinger. O que chamam de alienação da vida, possessão do mundo, não pode ser estudado apenas em termos e ao nível da psicologia, mas também adentrando as áreas da sociologia e da arte. O que faz o bom ficcionista senão descortinar sua obsessão individual através de sucessivas visões panorâmicas de um mundo quase sempre desgovernado? O livro supracitado exorbita da categoria simplesmente literária para se transformar num documento sincero sobre o nosso tempo, sempre instável, sujeito às ocasionais tempestade e à constância de um sol inclemente. .......................................................................................................................................... 

Faulkner pregava como ponto de partida da incursão literária os ditames da veracidade e do coração. Só mesmo a poesia (e a poesia não está apenas nos poemas, como sabemos), ou seja, o primado da piedade sobre a violência, pode exprimir e transfigurar as ações e situações, estabelecendo o equilíbrio, recuperando para a sanidade mental o caos existencial. Lemos milhares de páginas de jornais, revistas e livros e só raramente (quando encontramos o texto de verdadeira poesia em prosa ou em verso) é que fazemos uma pausa para examinar a própria consciência, tentando recuperar partes preciosas do passado com o intuito de sintetizar as articulações espasmódicas e torrenciais. Os grandes poetas históricos são os melhores legisladores da alma, os mais experientes codificadores sociais, os parceiros da natureza. ........................................................................................................................................... 

No livro “BAGAGEM”, Adélia Prado fala de suas experiências rotineiras, a vida em família numa cidade do interior de Minas (que já estava humildemente inscrita na geografia literária brasileira e que agora entra na história desta mesma literatura). Ela fala dos animais domésticos, dos objetos de uso pessoal, dos fatos mais comuns do cotidiano e dos entes familiares. Todas as pessoas do mundo falam disso a toda hora, umas bem, outras mal – e quase tudo se perde no burburinho do anonimato e do tédio exaustivo. Parece até que cada vez menos o homem se conhece mais se desumaniza, vítima de um opressivo esmagamento político. O poeta, que não perde a pureza original, fala de si por todos e de certa forma redime algo da espécie degradada. É uma espécie de efeito religioso onipresente na poesia da Adélia. A Bíblia é muito erótica, a obra de Guimarães Rosa idem. O erotismo, princípio positivo da vida, é mesmo muito poético. A BAGAGEM, de Adélia Prado, consta de muitas peças, de muitos órgãos, é uma bagagem repleta de cigarras que atrelam as patinhas no coração e também as moitas de sarças ardentes, a licença de sono e de perdão para o descanso das horas trabalhosas, o amarelo furável, a paixão branca e roxa de Jesus Cristo, a qualidade das telhas de antigamente nas casas de morar e de viver, alguns cantos para acordar mortos, os assobios dos santos, chamando, “um modo guloso de cheirar os verdes”, as três irmãs chorando na casa fechada por dentro, as comadres que se visitam aos domingos, um forte e prolongado carinho na nuca, as grandes e belas palavras que se tornam coisas e seres - e a roda dentada da própria poesia ilesa e ferina, docemente ferina. O bom livro é como uma caixa de segredos, da qual você vai tirando as coisas mais ou menos conhecidas, frases já lidas e ouvidas ou apenas intuídas, algumas dobras de tecidos, uma ou outra fruta ao alcance das mãos no quintal da infância. Nessa caixa você vai descobrindo novas lembranças e previsões que poderão levar o leitor ao fundo do mais alto estágio transitório, rompendo a linha linear de uma vida confinada apenas superficialmente. É só abrir e tirar um raio de sol perfumado aqui, uma franja de cútis aureolada ali. A gente vai abrindo e descobrindo e tirando um brilho na chuva, uma doce recuperação de pátinas pendentes.