SABOREANDO PELAS BEIRADAS II
DIA E NOITE O homem do campo chega à beira da fome. A tarde pousa em um dos seus ombros. Ele cava sete palmos de terra. Planta uma bandeira de milho. Dorme enquanto o dia não vem. O homem da cidade chega à beira da fome. A noite esmaga-lhe um pé. Ele entra na fila da morte. Acende um pito de pólvora. Dorme enquanto seu dia não vem. DOIS HOMENS E MEIO. De um modo geral a televisão brasileira piorou muito nesse longo hiato do governo lulista. As figuras predominantes são nojentas, não? Fico mudando de canal até fixar-me nos programas estrangeiros da SKY, cujos seriados são bem imaginados e melhormente realizados, interessantes, divertidos e instrutivos. Um deles, canal 44 da Warner, o “Two And Half a Men” focaliza uma casa de classe média, ocupada pelo cara compulsivo do sexo casual (Charlie), seu irmão bobo até falar que chega (Alan) e o sobrinho (uma porta que come, uma nuvem de metano em forma de gente) Jake e a descomunal empregada doméstica (Berta). O convívio é extravagante, hilário, atritoso e ao mesmo tempo afetivo, capítulo a capítulo duas vezes por dia, de segunda à sexta. A abundante, estrepitosa, esfuziante presença feminina enriquece a convivência nas pessoas de Judite, Rose, a mãe de Charlie e Alan e a sensuais jovens emancipadas da tolerante sociedade norteamericana.. Nos sucessivos capítulos dos variados enredos surgem uma infinidade de mulheres de vida fácil (?), cada qual mais cativante que a outra, todas causando problemas e prazeres, provando, afinal de contas, que a banalização do requinte esvazia o deleite – e que se a sensualidade perde o encanto quando se torna um vício (uma obrigação mecânica e cansativa), perde também o sentido original da erótica epifania corporal. O seriado é altamente recomendável para desopilar o fígado, é igual ou melhor do que alguns da televisão brasileira, agora infelizmente empobrecida diante de um contexto social tão avacalhado. PALIMPSESTO. O que é maravilhoso na literatura é a noção de que tudo já foi dito e, no entanto, quase tudo ainda está por dizer- e que a Vida, incluindo nela o Mundo, é o palimpsesto ágil e prolongado, é a idéia e a imagem, coladas em tela ágil e prolongada, no mural das idades. A história e a geografia vão e nos levam na mesma escada rolante que leva a parte de frente do Tempo e que traz a parte traseira do Tempo, numa enigmática variação de tons que nos acordam de um sonho mais lúcido do que tantos outros, irresolvidos e indisponíveis. O DOM DA PALAVRA. Qualquer palavra, uma vez amada, fica na memória... O dossel da árvore e da cama transparece na palavra que pode ocultar-se para preservar suas ramificações e bifurcações. O olhar é uma palavra e continua sendo um olhar: a mesma versificação da prosa na poetização dos afagos e das desventuras. Nem que passem meses e anos, a palavra tangível de um certo olhar miraculoso, continua gravada numa tela invisível aos olhos do corpo, assim conservando na treva dos outros uma certa luz individual-indivizível na janela dos anos. POESIA. Ana Cristina César, entre os complementos: o gato era um dia imaginado nas palavras. AS ROÇAS QUE NÃO VOLTAM MAIS. Igual a estória do roceiro que latia no terreiro da casa para economizar cachorro é a de tantos roceiros que iam descalços ao Arraial no dia de Festa ou de Missa – e só quando chegavam perto da povoação é que lavavam os pés e calçavam as botinas, - e assim chegarem bonitinhos na rua do arraial. O Córrego onde passavam até se chamava Lavapés. E também dentro do próprio arraial as pessoas ridicas (sovinas) andavam calçadas apenas num dos pés, a fim de que poupassem uma das botinas. Justificavam a manquitolagem com a alegação que o outro pé foi ofendido por um estrepe enquanto roçava um pasto. E assim variavam: um dia saiam calçados do pé esquerdo e no outro dia com a botina no outro pé. De forma que a vida útil do par de calçados durava o dobro do tempo.
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