quinta-feira, agosto 06, 2009

A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

Título pomposo, poético, atraente, o do livro de crônicas de João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emilio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, nascido em 1881 e falecido em 1921, dentro de um táxi no bairro do Catete (RJ), dias depois de ter sido espancado por marinheiros. Era filho do Professor Alfredo Coelho Barreto e de Florência Cristóvão dos Santos Barreto, mulata e bastarda. Aos 18 anos de idade começou a trabalhar na imprensa carioca, granjeando logo muita evidência, através de suas crônicas, reportagens, peças teatrais e livros. Autor de estilo mordaz e sarcástico, segundo afirma o coordenador da edição na Martin Claret (RJ 2008) do livro supracitado.”Vestia-se com espalhafato e assumia abertamente sua homossexualidade, atraindo críticas severas dos intelectuais conservadores de seu tempo”. Fundou e dirigiu o jornal “A Pátria” e colaborava em outros oito do Rio de Janeiro e de São Paulo. Publicou, entre outros, os livros “As Religiões do Rio”, “A Mulher e os Espelhos”, “A Alma Encantadora das Ruas”, sendo eleito membro da Academia Brasileira de Letras, viajando várias vezes em muitos paises da Europa, tornando-se amigo da famosa bailarina Isadora Duncan, ciceroniando-a no Rio em 1916, oportunidade em que testemunhou-a a dançar nua na Cascatinha da Tijuca. A temática do livro que dá título a este artigo, sempre me cativou. Em criança vivi inesquecivelmente a perambular nas ruas de Baixo e de Cima, no Morro da Fonte, no Areião e no Beco da Tenda, em Marilândia; e também na então chamada Rua do Meio em Itapecerica e depois, na adolescência, em várias ruas e avenidas da bela Belo Horizonte das décadas de 40 e 50. E as ruas encantadoras do Rio do nosso João do Rio? Elas interessavam-me muito pelas enfáticas citações nas letras da fase áurea da música popular brasileira, intensamente radiofonizada nos dourados anos das citadas décadas. Ruas e bairros: Urca, Tijuca, Santa Tereza, São Cristóvão, Bangu, Ipanema, Leblon, Copacabana, Lapa (onde fazia questão de hospedar-me num singelo hotel de onde saia para acompanhar os ensaios das escolas de samba). Naquele tempo a gente pegava o bonde, perguntava o que quisesse aos transeuntes, não corria o menor risco de ser atropelado, agredido, assaltado. Onde estivéssemos, estávamos em casa, uma beleza. Em Belo Horizonte, onde vivi em duas oportunidades somando quase 20 anos, eu cumpria o mesmo esquema de divertidas veleidades: pegava o bonde na Praça da Feira de Amostras, onde hoje fica a Rodoviária, ou na Praça Sete e ia até o final da linha e voltava e depois pegava outro de outra linha e assim fazia nos dias e noites de folga (trabalhava de segunda a sábado de dia e estudava de segunda a sexta de noite). Uma curtição, como hoje se diz. Imagens que não se apagam da memória ao longo dos anos, como que luzindo e projetando tantas e tantas cenas de filmes inesquecíveis. Existia naquela época, tanto em Marilândia, como em Belo Horizonte e Rio de Janeiro e em tantas outras grandes e pequenas cidades brasileiras a celebração dos ritos de passagem, o calendário de festas populares, a comemoração dos grandes feitos em datas históricas e, sobretudo, as brincadeiras, jogos e cantigas de rodas. Tudo religiosamente cumprido de acordo com os cânones, as crendices e a predisposição festiva das pessoas ricas, remediadas e pobres. Cada macaco no seu galho, ou seja: cada circunstância no seu contexto. O nosso João do Rio, tremendo gozador, não perdia uma oportunidade. Com o roteiro mapeado e as ferramentas de trabalho nas mãos (era jornalista, como disse) – e o olhar perscrutador seguindo as intenções de vivenciar e de exprimir não só sociologicamente o sistema de crenças em vigor nos lugares, mas também todo o corolário das satisfações humanas, repercutidas em si mesmo, das pessoas participantes nas pequenas, grandes e médias e grandes festividades. As tradições milenárias andavam nas pernas das pessoas, cantavam e pulavam em suas vozes e gestos descontraídos. E hoje? Hoje as ruas pertencem aos automóveis, aos criminosos e suas vítimas. São, com o perdão, da frase, quase antros. Essa coisa horrenda que é a tal de criminalidade ostensiva de hoje em dia, é um surto psicótico que se dissemina na área física dos grandes centros urbanos. Chegamos ao ponto crítico ao observar, vulnerável e impotente, que a população marginal cresce assustadoramente numa tendência ao que parece infindável. Quando Belo Horizonte ficou irrespirável na turbulência de ação e de situação, as pessoas honestas e inocentes passaram a fazer o papel de vítimas, perderam a naturalidade e o interesse pela recreação fora de casa. Com o passar do tempo a solução governamental foi aumentar a repressão através do maior aparato policial da Segurança Pública. Aí a incidência criminosa dos meliantes derivou-se para Contagem e depois com a adoção das mesmas providências, derivou para Betim e de Betim para Divinópolis. Gora ficamos a pensar: quando Divinópolis armar-se devidamente, para onde a violência da marginalidade irá? Este é o terrível sinal dos tempos a macular a história da humanidade? É um fenômeno de fácil entendimento. Os facínoras da marginalidade social estão sempre procurando um campo populoso onde possam misturar-se com os habitantes e assim esconder-se da suspeição. Num centro menor o elemento estranho é logo identificado e fica sob a espreita da desconfiança. Se o centro é maior tal identificação espontânea não acontece – e aí o meliante fica muito à vontade para cometer suas falcatruas em plena luz do dia em áreas públicas ou nas sombras noturnas escalando muros, arrebentando portas e janelas de casas comerciais e residenciais. Aí a vaca vai pro brejo, como se diz. Cadê a alma encantadora das ruas? Virou alma penada das assombrações e monstruosidades? O que está acontecendo, afinal de contas, neste mundo sem Deus, repleto de políticos salteadores do erário público? O mau exemplo vem das fajutas lideranças, dos chamados santos de paus ocos das intermináveis ocultações dos desmandos públicos? O que observamos, estarrecidos, nas prestações de contas dos poderes legislativos e executivos nas esferas municipais, estaduais e federais, é a paralisia ou impotência do judiciário – e agora (era só o que faltava!) os corruptos de um modo geral estão culpando a imprensa de falsos testemunhos de crimes que clamam aos céus dos dias de hoje. Querem, assim, cooptar ou desqualificar e desmoralizar o que é tradicionalmente conhecido no Brasil como “o quarto poder”, ou seja, a imprensa reconhecidamente sadia, que não tem o rabo preso com a iniquidade, como se diz. O que eles, os porcalhões, querem? Estabelecer o primado da mais insidiosa, genérica e apocalíptica imoralidade? Haja Deus, como diria o JÔ Soares.