quarta-feira, março 24, 2010

MINHA CIDADE LÊ

Indagado se há ou não uma pré-condição existencial para o escritor realizar ou não uma obra literária de boa qualidade, William Faulkner foi incisivo: “sim, que tenha vivido uma infância bem infeliz”. Quis assim dizer que a dor age como um motor produtivo de uma veracidade identificadora da validez literária? A beleza sob o ponto de vista humano é essencialmente triste? Creio que deva se, pelo menos, essencialmente veraz. Ou seja, uma obra literária despida de sangue e de alma não atinge o ímpeto nem o âmago da existência humana feita e refeita de inquietações diversificadas. Um incêndio de rosas - como diria o poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos sobre os caminhos da beleza que as trevas confundem. A infância é uma fase humana de face tenra, um tempo que simultaneamente passa e para a fica – e o ponto da passagem é o que abre as portas e janelas de uma intimidade pessoal para uma área mais ampla da exterioridade coletiva. A criança sobrevive no adulto, associando os liames e laços de seda e ternura, amaciando os dias e as noites intempestivamente espinhosos. Intervalo boreal da humanidade – e toda pessoa de boa vontade deste mundo material e espiritual preza o lado amável e ameno da infância. E agora mesmo estamos presenciando a repercussão dolorosa do sacrifício da encantadora menina chamada Isabella Nardoni, apaixonando toda a população brasileira. O encanto que se quebra de forma abrupta e cruel pode causar terremotos, erupções vulcânicas, tremendas tempestades. É a história infantil que tem um fim ao começar, uma lamentação floral inconsolável. Lembro-me dos ditosos tempos de uma buliçosa transparência em nossa casa quando, juntamente com a esposa, desfrutava da doce quadra infantil dos filhos Ana Paula e Paulo Henrique – a aurora de toda vida que os anos trazem, repetidamente, em todos os lares do mundo, nas indeléveis recordações salutares e coloridas. Eu adoravas ninar o sono noturno de ambos, contando estórias e mais estórias todas as santas noites daquele tempo. Sabia de muitas e muitas estórias, pois também tinha sido assim mimado na infância da eterna marilândia dos luares, estrelas e vagalumes das noites de um céu sempre aberto. Os dois, nas respectivas camas infantis atenciosamente ouvindo os contos e casos folclóricos e inventados. Contava um, dois, três, até que ambos, embevecidos, dormiam com os anjos de um céu terra-a-terra ao nível da fantástica realidade. Meu repertório era extenso e flexível – valia-me da memória social da pequena localidade e da capacidade inventiva que, bem ou mal, nunca me faltou ao longo da vida. Não era difícil nem trabalhoso, ao contrário: ia desfolhando a memória nas mil e uma noites dos enredos e personagens dos alibabás, das gatas borralheiras, dos capiaus da roça, dos sabichões da cidade. Um repertório infindável: a estória do Rei Midas que, depois de muito insistir, conseguiu com seu deus o dom de transformar em ouro tudo em que punha a mão. Ficou podre de rico, mas chegou num ponto que não conseguia nem comer, pois o próprio alimento se cristalizava antes de ser levado à boca. Pedindo pelo amor de outro deus que o livrasse daquele dom, ele conseguiu, mas a contragosto sentiu que suas orelhas cresceram e ficaram iguais às de um burro. Para esconder dos súditos deixou a cabeleira crescer – e só o barbeiro ficou a par do segredo. Um dia, não agüentando mais carregar o peso do segredo, furou um buraco no chão dentro do qual plantou as palavras em alto e bom som O REI MIDAS TEM ORELHAS DE BURRO. Ah, no local nasceu uma moita de cana que brandia ao vento em alto e bom som as palavras O REI MIDAS TEM ORELHAS DE BURRO!.... Dizem que foi aí que surgiu a fama da incontinência do viciado na cachaça feita de cana: nenhum tonto sabe guardar segredos. Sei que estórias assim que cativam a atenção infantil jorram nos livros e nas lembranças das pessoas mais idosas, acostumadas ao belo e bom hábito da leitura inveterada. Estão aí, sempre disponíveis, os livros de Monteiro Lobato, o teatro de Maria Clara Machado e de Osvaldo André de Mello, as estórias de Terezinha fonseca, de Lya Luft, de Ruth Rocha, dos Irmãos Grimm, de Hans Cristian Anderson, de Lewis Carrol, de Jílio Verne, de Maurício de Souza, de Esopo, de Walt Disney, de La Fontaine, além da prodigiosa saga roceira das antigas noites enluaradas do tempo que mesmo as aglomerações urbanas timbravam pelos ares e presságios rurais. Quem já se esqueceu do tempo em que os animais falavam, que a população terrestre freqüentava as belas e arretadas festas do céu? E a motivação racional de tanta sabedoria popular? Quem não sabe o porquê das arengas entre o cão, o gato e o rato? Ah, conta-se que o cão vendeu uma casa e pediu ao gato para esconder o dinheiro. O gato, cuidadosamente escondeu-o na cumeeira de sua própria casa – mas o rato foi lá o papou o rol de cédulas. A partir daí começou a arenga secular: o cão pensa que o gato ludibriou e o gato tem certeza que o autor do roubo foi o rato... E assim a estória entrava na perna de um pinto e saia na do pato – e quem quisesse mais estórias, que contasse mais quatro.... Mando aqui o singelo louvor ao Projeto de Leitura organizado na Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal pelos estudiosos Cláudio Guadalupe, Gisele Cristina e Helen Rodrigues, que sabem que a literatura é uma luz que não se apaga. Se isso acontecer, a treva devora a vida e o mundo. Vale lembrar o que George Johnson escreveu sobre a importância do amor à cultura em geral e do apego ao livro como a um instrumento alimentício da vida, citando Einstein: “Somos como uma criancinha que entra em uma biblioteca enorme. As paredes são cobertas até o teto com livros em muitas línguas diferentes. A Criança sabe que eles devem ter sido escritos por alguém. Não sabem quem nem como.ela não entende os idiomas nos quais estão escritos. Mas percebe um plano definido em sua organização – uma ordem misteriosa que ela não entende mas da qual vagamente desconfia. A coisa mais incompreensível sobre o universo é que ele é compreensível”. Além de ser belo, bom e nosso. É um livro, o livro dos livros.