quinta-feira, dezembro 16, 2010

DEUS, ANIMAIS, FAMÍLIA

Klaus Mann encerra o livro de sua biografia de André Gide, com as palavras do próprio escritor francês: “nunca aceite a vida como um fato consumado. Nunca deixe de acreditar que ela possa ser mais rica e mais bela – a sua vida e a vida de seus semelhantes. Não aceite nada por definição! Investigue tudo! Exija provas para cada teoria! Ajude a melhorar todos os males! Algum dia compreenderá que é o homem – e não Deus – que devemos censurar pela confusão dos nossos negócios terrenos. A partir desse dia você não concordará mais com o mal”. De vez em quando chego a pensar que determinada árvore às vezes parece uma pessoa. E como em outras vezes uma pessoa possui os ares de uma galinha da angola ou de um cachorrinho vira-latas. Uma combinação de elementos genéticos de enzimas e cromossomos se plasmaram na justaposição existencial dos condimentos e se abraçaram na mistura das afinidades – e daí adveio a beleza de uma moça chamada Mirafélia e a feiúra de um cara que nem mesmo merece ter um nome decente? A MEL, nossa cachorra afegã, que tem o porte de uma majestade e o semblante de uma poeta-musa contemplativa, fica amuada depois do cio, como se tivesse sido emprenhada, mesmo sem cruzar com o macho. Apresenta os sintomas da gravidez, abre o apetite, deita à sombra nas folhas da mangueira, e se estira, toda momenta, ciente de que espera um alentado, primoroso parto. A clonagem acenada pelos cientistas atropela a esperança de melhores dias no reino animal. Já pensaram na canseira visual das fisionomias repetitivas? Ah, não foi à toa o que aconteceu na Fazenda Serra Negra, quando uma ovelha apaixonou-se pela novilha malhada, que retribuiu o amor com o mesmo interesse e a mesma intensidade. Não havia cerca de arame ou de tijolo que as separassem.... Um amor descabido e real e de tal maneira que quando o dono vendeu uma teve que vender a outra para o mesmo comprador, só assim impediu que ambas morressem de tristeza. O amor delas era ou não era uma fuga às semelhanças, uma afetiva busca da diversidade? Lembro-me de uma Missa do Dia das Mães na Igreja de Nossa Senhora de Fátima (bairro Porto Velho, Divinópolis, MG), muitos anos passados. Os atos litúrgicos repercutiam nos corações afinados na contrição e na penitência e nas aleluias evangélicas: as orações, os cantos, os salmos, as leituras bíblicas, as oferendas e a comunhão cristã do povo de Deus. Tudo muito sublime como em toda primavera da alma humana diante do santo sacrifício da Missa. Num dos momentos da cerimônia, a palavra é dada a uma criança, que declara em alto e bom som, que o dia das mães é todo santo dia - e o padre, em acréscimo, observa que cada uma das mães no mundo inteiro é sempre uma auxiliar direta de Deus, uma vez que está sempre recriando a Vida. Ato contínuo, todas as mães presentes são reunidas num recinto do altar a fim de receberem a homenagem coletiva dos fiéis. Aí uma catequista (que depois descobri ser minha prima) passou a ler um texto de palavras quentes e luminosas, que penetraram nos corações, enternecendo-os coletivamente. Consciente do que falava a moça improvisava o discurso do amor, da gratidão, do reconhecimento e da virtude. E assim naturalmente, sem enfatizar o arroubo sentimental, ela desfiava as palavras, as frases e os períodos que assim, enxutos e sinceros derretiam os corações - e as pessoas começavam a enxugar as lágrimas da emoção autêntica e profunda. A própria catequista começou a soluçar: soluçava e falava num duro exercício de estoicismo e de fina piedade. Abro aqui um parêntese para observar que o tema do amor materno sempre foi naturalmente caloroso e comovente, evocando a meiguice e a ternura recíprocas na perdurável lembrança que confunde o passado com o presente na interligada convivência familiar. Assim estamos sempre diante dos passos de nossa própria vida, iluminados pelo olhar de nossa querida, inesquecível mãe. No entanto é penoso, muito penoso meditar sobre o descaso dos seres humanos com a origem, a vivência e o destino dos outros animais que habitam o globo terrestre. É doloroso ver em todo lugar e a todo momento o sacrifício dos animais, aleatoriamente denominados de irracionais – e tal absurdo que clama aos céus ser considerado natural e até necessário. É preciso estar cego, surdo e mudo para promover, aprovar e aproveitar da vida desses animais para a manutenção da vida humana. Não existiria outra alternativa alimentar para saciar nossa necessidade? Penso numa vaca alimentando seu bezerro, na beleza daquele momento....O mesmo acontecendo com os gatos, os cães, os pássaros, com todos os bichos da terra....Penso na semelhança biológica deles conosco... e não entendo por que temos que sacrificá-los, se assim procedendo estamos rebaixando-nos diante deles mesmos, nossas vítimas.... É difícil aceitar a estranha noção de que, afinal de contas: somos ou não somos as piores criaturas da face da terra?