quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A BELA E QUERIDA DIVINÓPOLIS

Textos avulsos (alguns publicados em jornais da cidade no período de 1966 a 1986). 

O Doce Pássaro da Juventude. Divinópolis não é o Parnaso nem eu o poeta das musas. Que os deuses me perdoem a insolência de suspirar pela sagrada tocha de uma inspiração acima de minhas forças. Segundo a literatura oral da mitologia grega, as Musas eram filhas de Júpiter, freqüentavam o Olimpo, moravam no Parnaso, no Helicon e no Pindo. Deusas de um modo especial, os mortais prodigalizavam-lhes todas as honras e sacrifícios, tanto na Grécia como na Macedônia. Eram nove, todas jovens e igualmente belas, posto que diferentes no gênero da beleza. Nasceram como respostas ao humano anseio de transfiguração do trivial e do transitório. Entre as fontes e os rios, o Hipocrenio, a Castália e o Parnesso eram-lhes consagrados; entre as árvores, a palmeira e o loureiro; entre os homens, todos os poetas. Multiplicaram-se pela face da terra, musicando os passos do homem na escala cromática dos símbolos, onde ainda passeiam, às vezes claras e diáfanas e na maioria das vezes obscuras como os dados de um mistério. Se ainda não as conhece por experiência própria, tenha os olhos atentos ao percorrer os quadrantes da cidade, ao descer ou subir as ruas, esplanadas e colinas do Porto Velho: se de repente alguma coisa estremecer, não perca o espetáculo que já habitou luminosamente a vigília dos poetas, de Orfeu a Drummond. Clio era a primeira delas e presidia a História. Eu mesmo já a vi em Divinópolis, duas ou três vezes, nas tardes adjacentes ao rio e à via férrea. As pedras floresciam sob seus pés, no ar bailava uma elegia vinda da Grécia para Minas Gerais. Euterpe, a segunda, inventara a flauta e presidia a Música. Mesmo em silêncio, cantava. Ainda hoje carrega os fluidos inefáveis – e suas canções não são apenas para ouvir, mas também para pegar com ambas as mãos e abraçar com a alma e tudo. Seu riso, canto de amor panteísta, abençoa a nossa cidade. Tália, nome de flor,ela própria um jardim, se desperta para o sonho da existência, de longe as brisas acorrem, alardeando os arautos da primavera, em qualquer estação. Orquídeas e violetas são algumas pétalas de sua natureza angelical. Melpomene, a quarta segundo Hesíodo, era a musa da Tragédia e assim exprime do alto de sua gravidade comportamental, a ânsia e a ênfase do vôo para a verdade. De suas veias infladas explode sempre uma canção de sua irada formosura. Terspsicore, a que ama a Dança, mãe das sereias, preside a vocação coreográfica, liberta o corpo nas oníricas campinas da infância. Com a graça e a leveza de ninfa e sílfide, percorre toda a escala da ressonância fantástica, recupera o clima primitivo do mundo, cuja saudade, hoje, transformou-se na esperança do céu. Erato, a sexta, preside o lirismo urbano e anacreontico. Os olhos verdes na cor morena do rosto, que transcende a epiderme e se funde ao rosa para formar a tonalidade carnal de um inédito soneto parnasiano. Que Rimbaud não escreveu. Hoje, talvez, sua lira seja um volante de automóvel, mas lindas rolas ainda beijam-lhe os pés. Na tarde bíblica e rural, no sonho de uma noite de verão, no romanceiro de todas as nações, nas avenidas e ruas transversais das cidades mais humanas, elas estão sempre. O nome de cada uma é uma epígrafe da Felicidade. Polimia, a sétima, musa da Retórica, cujo nome composto significa mito e hino, apresenta-se de branco no entreato das paixões que suscita. Um branco com mil variações. Só Chopin, em noite inspirada, poderia explicar sua genealogia e sua posteridade. Urânia presidia a Astronomia – e porisso tem esses olhos portadores de luares diurnos, envolvendo com seu magnetismo as miríades celestiais. O seu cotidiano é decorado com luminárias renascentistas, mesmo sendo nossa contemporânea. Calíope, a nona (de acordo com Hesíodo, seria a primeira), tem um nome composto que em grego quer dizer um belo rosto, o que confirma a tese de que o objeto do amor só é visível de perto e frontalmente. Elas são nove ou nove multiplicado por nove mil vezes nove. Ou mais. A última é sempre a primeira. Platão queria acrescentar o nome de Safo de Lesbos, para completar a dezena. e não apenas ele: cada um de nós tem sempre uma para povoar os belos campos parnasianos de nossas oníricas particularidades. Tem ou não tem?