quarta-feira, abril 19, 2006

A HUMANIDADE INVIÁVEL DE NELSON RODRIGUES

Nelson Rodrigues é uma das pessoas mais instigantes e apaixonantes da cultura brasileira, uma pessoa que participou com o rol obsessivo de suas pulsões do processo conflituoso da instauração pública dessa cultura no século vinte através do jornalismo folhetinesco, da crônica esportiva, do teatro polêmico e dos indefinidos e intermináveis embates ideológicos. Durante anos a fio ele ia e voltava da casa para o trabalho na redação dos jornais onde polemizava consigo mesmo e com os circunstantes, impondo seu ideário-imaginário com a eloqüência e a persuasão de um ativista ferido e persistente. Progressista? Reacionário? Com o cigarro apagado na boca, diante da velha máquina de escrever, ele a bater com um só dedo a revelação do constante tumulto lá fora. Era respeitado, temido, mas também alvo de brincadeiras: quando saia para tomar café, os colegas da redação iam ver o que ele estava escrevendo e, sacanamente, acrescentavam palavras, frases, períodos inteiros no texto em andamento, e aguardavam, apreensivos, o que ia acontecer. Ele chegava, lia as últimas linhas e com a cara mais inocente continuava datilografando, como se ninguém tivesse intrometido. Li suas dezessete peças teatrais num fôlego de dezessete dias e noites. Tinha visto a encenação de apenas “Álbum de Família” (em Belo Horizonte, pelo Grupo Balcão) e “Dorotéia” (em Divinópolis, dirigida por Oswaldo André de Melo) e já vi os filmes baseados em seus textos: “A Falecida”, “Os Sete Gatinhos”, “Boca de Ouro”, “Bonitinha Mas Ordinária”, “Toda Nudez Será Castigada”, “Dama do Lotação”, “O Casamento”. Li muitas de suas crônicas da vida como ela é, alguns de seus romances folhetinescos, e também acompanhei seu purgatório político na época do mandonismo militar. Lembro com saudade dos intérpretes de suas peças, que vi em outras encenações e que fazem parte do espetáculo brasileiro de todos os tempos: Maria Della Costa, Nicete Bruno, Itália Fausta, Rodolfo Mayer, Jece Valadão, Vanda Lacerda, Joel Barcelos, Adrana Prieto, Luiza Barreto Leite, Milton Morais, Abdias do Nascimento, Cleide Yaconis, Sara Berditchevski – e também os grande atores do espetáculo futebolístico, principalmente os de seu querido tricolor carioca, o Fluminense de Valdo, Ademir, Castilho, Escurinho, Orlando, Rodrigues, Pinheiro. Tudo o que escrevia era como se dissesse no melhor sotaque carioca. Suas frases bombásticas e lapidares: “o carioca vaia até o minuto de silêncio”, “o mineiro só é solidário no câncer”, “toda mulher gosta de apanhar”, “louco é quem esquece”, “impotente como um santo”, “o casto é um obsceno”, a granfina é a única imunda limpa”. Todas, segundo ele, tem um fundo falso, mas a verdade está lá dentro. O temário circundante e universal, contingente e definitivo, as teses e as antíteses, o vai-e-vem da dialética, tudo irrompe, desabrocha e derrama em sua obra fluídica, uniforme, inteiramente assumida, mesmo no burburinho das contradições dos outros e não dele. Ele sempre estava firme em sua instabilidade. Sofria da obsessão das pulsões e não escoimava o moralismo problemático, insolúvel, da dolorosa sexualidade, revelando em sua obra em caracteres até meio berrantes uma espécie de incesto eterno e universal com as exclamações (para nós interrogações): se somos todos irmãos, somos todos incestuosos? as anomalias (pedofilia, estupro, homossexualismo) são normais? E aqui e ali ao longo do realismo chocante reponta, adocicado, um certo surrealismo: a sensação de um personagem que as mesas vinham lhe estrangular; o incerto que nos ama e a certeza que amamos; o nosso inescondível amor ao mal; as palavras que mordem; o homem de seis dedos e o outro que lacrimeja apenas num dos olhos. E as maravilhas expressionais, pinçadas aqui e ali: se tirarem a vida do homem, ele cai de quatro; o sexo feminino é uma orquídea deitada; angústia braba, divã macio; a demagogia sórdida; o óbvio ululante; toda unanimidade é burra; a hediondez assumida; toda boca aberta é meio ginecológica; só o canalha precisa de uma ideologia; a alma vem depois, com o tempo. São lições e mais lições – e o negativo do filme da morbidez de um mundo no qual é impossível viver sem perder diariamente a sanidade (o mesmo mundo de Faulkner!). Toda sua vasta , quadrada, cúbica obra completa vai sempre interessar a quem quer que seja. É o pão nosso de todo dia.