quarta-feira, abril 05, 2006

POEMAS ABSOLUTAMENTE INÉDITOS

1 – Quem Não Comparece ao Encontro das Duas Almas? A literatura brasileira está ferida mortalmente em sua fluência por duas lâminas afiadas: - o pragmatismo da mídia - o corporativismo universitário. É melhor dizer logo: ou você tenha luz própria (seja um cara famoso e rentável) ou tenha livre trânsito nas cátedras e academias e possa dar e receber bolsas à mão cheia: caso contrário seu livro não sairá da gaveta seus poemas envelhecerão no ineditismo. 

2 – A Água Está Nua O rio e o tempo, o mar e a morte os víveres indigestos, os acenos palatáveis o realismo onírico mais rasteiro e no entanto aquoso. Vem um peixe e diz a meus ouvidos que estou nadando ao contrário, que assim vou de mal a pior. Tento mas não consigo desvencilhar. Continuo a nadar a nadar a nadar no rio no mar no tempo. E toda hora Uma Coisa está passando em todas as direções. 

3 – A Janela dos Anos Tempo parcialmente nublado, diz a meteorologia Espaço completamente corrido, dizem os olhos. As águas passadas tocam os moinhos da frente O amor dos melhores é um orgasmo infindável! Mas sem a cidadania, nada feito nem a fazer! Os gestos sabem falar de cor e salteado O boi é um pássaro de muitas e muitas arrobas, que canta e voa por necessidade e boniteza. Quando aos olhos as mãos ficam belas (escondidas para fugir das pegadinhas, ali onde as glandes se encontram e explodem) Deus fica um pouco canhestro, um pouco míope (a luz em demasia cega, o poder demasiado estereliza). Ah a vida é muito mais do que sua história: a imaginação é onisciente, mas a vontade não é onipotente. Só mesmo Deus para salvar-me bem ali na janela dos anos de vida e morte. A sensualidade canta em silêncio: o que está no ar é de quem pegar primeiro. O rochedo muda de lugar, se olhamos Se viramos as costas, ele dá alguns passos O alecrim do pasto, diz a lenda, nunca passa da altura de Jesus Cristo, ou seja: depois dos 33 anos de idade, ele passa a crescer para os lados e não mais para cima. O tempo é democrático: ninguém fica mais novo, todos ficam mais velhos. O frio chora pelos cantos, mas o amor, mas o amor mesmo a dormir escreve os poemas, tira o sono dos lugares. 

4 – A Licença Poética A noite não é o funeral nem o sepulcro do dia, é a parte azulada da vida vermelha. Longe dali a sanidade açucarada, a face angelical da vexatória juventude. Perto dali a boca no lugar do amor, as escamas dos lábios e os interstícios úmidos e pregueados, a justaposição molhada e vermelha (as secreções estancadas por enquanto?), os estrépitos cadenciados dos fulgores a forja das emoções subindo e descendo sobre o braseiro da mais recente paixão. Depois de dois dedos de prosa ah já vinha o prazer merecido depois de tanta sofrida beleza ah já chegava o prazer merecido depois de tanto sofrer a beleza. Se a palavra estiver do lado que o sol bate, é mais visível. Se surgir do lado oposto ao da lua cheia, é mais audível. O amor não tem nada a ver com as outras pessoas, só com nós dois no momento dele. A amplitude escorrega do contexto A vida social é esparrodada, violenta Os amantes precisam comer-se um ao outro, de vez em quando na bitaca do sossego. Não quero falar (para não dissipar) do instante em que ela tirou a roupa (oh perdão, mas foi isso mesmo que ela fez, ou muito mais que isso?). 

5 – Tempo, Tempero. Não tenho mais a juventude. Não posso mais jogar bola? O passado avança no futuro, o futuro que retroage e me inquieta. Cito em voz baixa a metáfora dessa mutável decadência. Tento controlar remotamente os pontos de atrito e de coesão entre a infância e a velhice. Não tenho mais noites a perder. A vida é mesmo uma criança: gosta, mas tem medo. 

6 – Ecologicamente Correto? Deixe aos pássaros a função dos pássaros, alguém me recrimina enquanto esparramo fubá no lajedo sob a mangueira do quintal de minha casa, perto da rua e do rio. Por que não os deixe catar os insetos e os grãos nas folhas e na grama, como é do gosto natural deles?, alguém recrimina-me por estar desequilibrando a natural povoação da redondeza. Você vai ver a praga de mosquitos Você vai sofrer o enxame de formigas Você vai sentir o que é bom pra tosse! Meu Deus, o ímpeto estranho das pessoas não sabe onde vai parar. Só é contido quando abalroado pelo sofrimento mais volumoso e pesado, do contraposto; se isto não acontecesse as pessoas impetuosas já teriam dado cabo do nosso mundo. Meu Deus, é melhor, bem melhor espiar a passarada no terreiro a saltitar a cantar antes e depois da chegada de minha sacola de fubá grosso. A dialética é um terreno que escorrega igual quiabo? Vocês que criticam minha leviandade: vocês pensam que não gosto de ver alguém feliz? De ver o brilho nos olhos de quem pede um pão velho e ganha um pão novo, assadinho na hora? A profundidade pode ser um ninho de balelas A superfície pode ser um tapete de perolas! Por que a passarada não pode ser feliz ao menos lá uma vez ou outra na vida, se posso contentá-la, trocando a exausta e suada ração de cisco e de mofo pelo farelo do autêntico milho roceiro? Não lhe passam na lembrança, nem de longe, que urge às vezes retocar os trilhos, remontar os degraus da caminhada, sabendo que atrás da serra tem serra? 

7 – A Mente, Dentro e Fora “a mente é uma coisa encantadora” – Marianne Moore. Mesmo que esteja em apuros de solidão, na janela do quarto que dá para o muro, e que se contenha nas lágrimas espontâneas do refletir e do contemplar em circunstância inapelável, você ainda tem a mente em perfeito estado para levantar uma das mãos e enxugar a lágrima que veio sem ser chamada. A vida é assim e assado, assim mesmo. O viver é que encrenca-se aqui e ali (no trabalho no casamento na preocupação com os filhos e com a situação mundial). Não obstante a mente é ágil, incorpórea, escapa de qualquer tipo de fechadura, passa da latitude à altitude e à longitude num abrir e fechar de olhos (dos olhos mentais, é bom frisar). É assim que escapole de um dardo, de uma laçada, e se alcança uma graça, um abrigo no inconsciente. A mente existe é para isso mesmo. Para exprimir e isolar e suprimir, para driblar as agressões, para que se acorde ileso de um sono tenebroso. A mente é individual e como tal não vai salvar o mundo da baboseira e da barbárie, mas pode enxugar a lágrima ocasionada pelo descuido de si mesma na atenção que vinha dando aos órgãos e sentidos e aos tecidos fisiológicos de sua pessoa, finalmente de ânimo mais ou menos apaziguado, pronto para novas incursões. 

8 – Queria Beijar Tuas Mãos De onde estava só podia ver o dorso e não a palma da mão direita. Os dedos desnudos ,pentagrama chopiniano, no belo prazer de articular os emblemas do prelúdio e do epílogo da façanha, sem sair do lugar. Os dons imbuidos afundam os anátemas no poço, no poço há muito abjurado. O polegar e o indicador seguram as folhas do jornal noticioso. Os outros dedos descansam, revirados, cada qual com suas palavras, invisivelmente a escreverem, a esquecerem o frio de tantos anos, a refazerem das cinzas o calor que volta a crepitar (que volta a crepitar?). 

9 – Modos de Viver Uma das alternativas é: depois de examinar e refutar o auto-conhecimento, seguir pelas veredas sombrias da alma. Primeiro a vida antecipada nas preferenciadas regiões oníricas Depois a vida póstuma no terreno móvel da velha saudade. Sempre à deriva como o junco do rio e a pedra do caminho. O rio e o caminho não têm outros lugares de ir e mesmo assim não choram ao amanhecer nem enrugam os rostos ao anoitecer. A ociosidade tem mau gosto e cheira mal. Como beijar a bunda de quem só sabe comer e dormir? 

10 – É Bastante Ter Saúde? O cavaco de sucupira que tomba no cerrado fratura, no útero, o crânio do nascituro. A história lendária e mística do trabalho rural. A história sangrenta e vária da população urbana, tudo que tenta mover-se neste livro brotou do chão como um pé de romãs, alastra no chão como os pés das pessoas na cadência das enxadas no eito: o círculo de ecos a vitamina da fé. 

11 – A Jabuticabeira do Quintal As árvores morrem erguidas: os galhos ao sol e à chuva das estações, espetados na direção da névoa azulada. Seja por alguma doença ou por velhice, uma e outra expiram aos poucos nos relapsos dos ciclos, na agonia dos silentes suspiros. Triste é ver a jabuticabeira lá de casa perder a seiva circulante das artérias mais íntimas, murchar e secar o madeiramento e a folhagem amarelar, dolorosamente. Meu Deus do céu, tudo isso em meio à verdura exuberante das laranjeiras e mangueiras e bananeiras, agora meras vizinhas condolentes (tal e qual como geralmente acontece com os moradores do arraial quando perdem um amigo, um parente).