POEMAS ABSOLUTAMENTE INÉDITOS
1 – Quem Não Comparece ao Encontro das Duas Almas? A literatura brasileira está ferida mortalmente em sua fluência por duas lâminas afiadas: - o pragmatismo da mídia - o corporativismo universitário. É melhor dizer logo: ou você tenha luz própria (seja um cara famoso e rentável) ou tenha livre trânsito nas cátedras e academias e possa dar e receber bolsas à mão cheia: caso contrário seu livro não sairá da gaveta seus poemas envelhecerão no ineditismo.
2 – A Água Está Nua
O rio e o tempo, o mar e a morte
os víveres indigestos, os acenos palatáveis
o realismo onírico mais rasteiro
e no entanto aquoso.
Vem um peixe e diz a meus ouvidos
que estou nadando ao contrário,
que assim vou de mal a pior.
Tento mas não consigo desvencilhar.
Continuo a nadar a nadar a nadar
no rio no mar no tempo.
E toda hora Uma Coisa está passando
em todas as direções.
3 – A Janela dos Anos
Tempo parcialmente nublado, diz a meteorologia
Espaço completamente corrido, dizem os olhos.
As águas passadas tocam os moinhos da frente
O amor dos melhores é um orgasmo infindável!
Mas sem a cidadania, nada feito nem a fazer!
Os gestos sabem falar de cor e salteado
O boi é um pássaro de muitas e muitas arrobas,
que canta e voa por necessidade e boniteza.
Quando aos olhos as mãos ficam belas
(escondidas para fugir das pegadinhas,
ali onde as glandes se encontram e explodem)
Deus fica um pouco canhestro, um pouco míope
(a luz em demasia cega,
o poder demasiado estereliza).
Ah a vida é muito mais do que sua história:
a imaginação é onisciente,
mas a vontade não é onipotente.
Só mesmo Deus para salvar-me bem ali
na janela dos anos de vida e morte.
A sensualidade canta em silêncio:
o que está no ar
é de quem pegar primeiro.
O rochedo muda de lugar, se olhamos
Se viramos as costas, ele dá alguns passos
O alecrim do pasto, diz a lenda, nunca passa
da altura de Jesus Cristo, ou seja:
depois dos 33 anos de idade, ele passa
a crescer para os lados e não mais para cima.
O tempo é democrático:
ninguém fica mais novo, todos ficam mais velhos.
O frio chora pelos cantos, mas o amor, mas o amor
mesmo a dormir
escreve os poemas, tira o sono dos lugares.
4 – A Licença Poética
A noite não é o funeral nem o sepulcro do dia,
é a parte azulada da vida vermelha.
Longe dali a sanidade açucarada, a face angelical
da vexatória juventude.
Perto dali a boca no lugar do amor,
as escamas dos lábios e os interstícios
úmidos e pregueados,
a justaposição molhada e vermelha
(as secreções estancadas por enquanto?),
os estrépitos cadenciados dos fulgores
a forja das emoções subindo e descendo
sobre o braseiro da mais recente paixão.
Depois de dois dedos de prosa
ah já vinha
o prazer merecido depois de tanta sofrida beleza
ah já chegava
o prazer merecido depois de tanto sofrer a beleza.
Se a palavra estiver do lado que o sol bate,
é mais visível.
Se surgir do lado oposto ao da lua cheia,
é mais audível.
O amor não tem nada a ver com as outras pessoas,
só com nós dois no momento dele.
A amplitude escorrega do contexto
A vida social é esparrodada, violenta
Os amantes precisam comer-se um ao outro,
de vez em quando
na bitaca do sossego.
Não quero falar (para não dissipar)
do instante em que ela tirou a roupa
(oh perdão, mas foi isso mesmo que ela fez,
ou muito mais que isso?).
5 – Tempo, Tempero.
Não tenho mais a juventude.
Não posso mais jogar bola?
O passado avança no futuro,
o futuro que retroage e me inquieta.
Cito em voz baixa a metáfora
dessa mutável decadência.
Tento controlar remotamente os pontos
de atrito e de coesão
entre a infância e a velhice.
Não tenho mais noites a perder.
A vida é mesmo uma criança:
gosta, mas tem medo.
6 – Ecologicamente Correto?
Deixe aos pássaros a função dos pássaros,
alguém me recrimina enquanto esparramo
fubá no lajedo
sob a mangueira do quintal de minha casa,
perto da rua e do rio.
Por que não os deixe catar os insetos e os grãos
nas folhas e na grama,
como é do gosto natural deles?, alguém
recrimina-me por estar desequilibrando
a natural povoação da redondeza.
Você vai ver a praga de mosquitos
Você vai sofrer o enxame de formigas
Você vai sentir o que é bom pra tosse!
Meu Deus, o ímpeto estranho das pessoas
não sabe onde vai parar.
Só é contido quando abalroado pelo sofrimento
mais volumoso e pesado, do contraposto;
se isto não acontecesse as pessoas impetuosas
já teriam dado cabo do nosso mundo.
Meu Deus, é melhor, bem melhor espiar
a passarada no terreiro a saltitar a cantar
antes e depois da chegada de minha sacola
de fubá grosso.
A dialética é um terreno que escorrega igual quiabo?
Vocês que criticam minha leviandade:
vocês pensam que não gosto de ver alguém feliz?
De ver o brilho nos olhos de quem pede um pão velho
e ganha um pão novo, assadinho na hora?
A profundidade pode ser um ninho de balelas
A superfície pode ser um tapete de perolas!
Por que a passarada não pode ser feliz ao menos
lá uma vez ou outra na vida,
se posso contentá-la, trocando a exausta e suada
ração de cisco e de mofo pelo farelo do autêntico
milho roceiro?
Não lhe passam na lembrança, nem de longe,
que urge às vezes retocar os trilhos, remontar
os degraus da caminhada, sabendo
que atrás da serra tem serra?
7 – A Mente, Dentro e Fora
“a mente é uma coisa encantadora” – Marianne Moore.
Mesmo que esteja em apuros de solidão,
na janela do quarto que dá para o muro,
e que se contenha nas lágrimas espontâneas
do refletir e do contemplar
em circunstância inapelável,
você ainda tem a mente em perfeito estado
para levantar uma das mãos e enxugar
a lágrima que veio sem ser chamada.
A vida é assim e assado, assim mesmo.
O viver é que encrenca-se aqui e ali
(no trabalho no casamento na preocupação
com os filhos e com a situação mundial).
Não obstante a mente é ágil, incorpórea,
escapa de qualquer tipo de fechadura,
passa da latitude à altitude e à longitude
num abrir e fechar de olhos
(dos olhos mentais, é bom frisar).
É assim que escapole de um dardo, de uma laçada,
e se alcança uma graça, um abrigo no inconsciente.
A mente existe é para isso mesmo.
Para exprimir e isolar e suprimir,
para driblar as agressões,
para que se acorde ileso de um sono tenebroso.
A mente é individual e como tal
não vai salvar o mundo da baboseira e da barbárie,
mas pode enxugar a lágrima ocasionada
pelo descuido de si mesma
na atenção que vinha dando aos órgãos e sentidos
e aos tecidos fisiológicos de sua pessoa,
finalmente de ânimo mais ou menos apaziguado,
pronto para novas incursões.
8 – Queria Beijar Tuas Mãos
De onde estava só podia ver o dorso e não
a palma da mão direita.
Os dedos desnudos ,pentagrama chopiniano,
no belo prazer
de articular os emblemas do prelúdio e do epílogo
da façanha, sem sair do lugar.
Os dons imbuidos
afundam os anátemas no poço,
no poço há muito abjurado.
O polegar e o indicador seguram
as folhas do jornal noticioso.
Os outros dedos descansam, revirados,
cada qual com suas palavras, invisivelmente
a escreverem, a esquecerem o frio de tantos anos,
a refazerem das cinzas o calor que volta a crepitar
(que volta a crepitar?).
9 – Modos de Viver
Uma das alternativas é:
depois de examinar e refutar o auto-conhecimento,
seguir pelas veredas sombrias da alma.
Primeiro
a vida antecipada nas preferenciadas regiões oníricas
Depois
a vida póstuma no terreno móvel da velha saudade.
Sempre à deriva
como o junco do rio e a pedra do caminho.
O rio e o caminho não têm outros lugares de ir
e mesmo assim não choram ao amanhecer
nem enrugam os rostos ao anoitecer.
A ociosidade tem mau gosto e cheira mal.
Como beijar a bunda de quem só sabe comer e dormir?
10 – É Bastante Ter Saúde?
O cavaco de sucupira que tomba no cerrado
fratura, no útero, o crânio do nascituro.
A história lendária e mística
do trabalho rural.
A história sangrenta e vária
da população urbana,
tudo que tenta mover-se neste livro
brotou do chão como um pé de romãs,
alastra no chão como os pés das pessoas
na cadência das enxadas no eito:
o círculo de ecos
a vitamina da fé.
11 – A Jabuticabeira do Quintal
As árvores morrem erguidas:
os galhos ao sol e à chuva das estações,
espetados na direção da névoa azulada.
Seja por alguma doença ou por velhice,
uma e outra expiram aos poucos
nos relapsos dos ciclos,
na agonia dos silentes suspiros.
Triste é ver a jabuticabeira lá de casa
perder a seiva circulante das artérias mais íntimas,
murchar e secar o madeiramento
e a folhagem amarelar, dolorosamente.
Meu Deus do céu, tudo isso
em meio à verdura exuberante das laranjeiras
e mangueiras e bananeiras,
agora meras vizinhas condolentes
(tal e qual como geralmente acontece com os moradores
do arraial
quando perdem um amigo, um parente).
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