quarta-feira, abril 19, 2006

HOMERO - O LIRISMO DA TRAGÉDIA

O mundo é uma bola
é como se apanhado em circulares redomas
subisse e descesse na observação, distanciando
e aproximando nas proporções;
como se o tempo, igualmente fatiado em luzentes círculos
fosse apagando e acendendo na observação,
aproximando e distanciando nas percepções:
assim enfim chegamos à terra dos deuses eternos
que aos pobres mortais impingem a triste, a descuidosa
existência em tantos vaporosos milênios, em tantas
saqueadas regiões nos milênios....
Homero Homero
é mero vate da póstera glória de Helena
que autocadelou-se no impensado amor de Páris,
mas que erétil e pomposa prelibou a glória
de no futuro ser a estrela mais rútila da constelação
do mais rútilo dos rapsodos....
Helena Helena
filha de Zeus e de Leda, que causou anos e anos
a mais encarniçada guerra da antiguidade;
outras divas e musas brilharam no simultaneamente
lírico e épico estro dos poetas exemplares:
Afrodite Tétis Calipso Nausicaa Arete Hecuba
Andrômaca Brizeida Penélope ah Penélope!
Ao poeta cabia lapidar os versos,
aos deuses, formatar os heróis....
Pois que Zeus nos confins da alma terra
criou e recriou o leito sexual acima do chão
na erva florida do loto raciado e virente
do açafrão prazenteiro e jacinto em alfombra
para assim acariciar e ser acariciado por Alcmena
Sêmele Dánae Demeter Hera e quantas outras de flamantes
anelos...
Hermes foi outro que não se eximia e nos bastidores
escolhia as jovens bailarinas
(Polimela que o diga do arfar e do transcender)
do brindado coral de Ártemis....
Helena Helena
irmã de Clitemnestra, outra bisca, esposa de Agamenon
que por sua vez era irmão de Menelau, o traído esposo
de Helena, mão ceifadora das gerações....
Já Penélope
dona da arte de criar filhos e fios,
sempre a tecer o manto da abstinência....
Já Pandora, também tecelã, com a fatídica boceta,
aluna da Atena fiandeira, e também Ariadne, mestre
na arte da tapeçaria:
todas ocupadas em defender a feminil fenda
(como diria Freud milênios depois), a fonte
da vida e do prazer....
E as Parcas? quem ignora a que afinal de contas
trama nossos destinos?
Homero Homero
a orquestração da Ilíada não é tão lírica,
é mais épica do que a da Odisséia....
Amor e ódio no entanto estão de braços dados
para matar, para morrer:
viver é então agonizar?
Heitor e Aquiles lutam como se cantassem
como se dançassem
como se copulassem voando voando para depois
rastejar na grama como um aeroplano de brinquedo...
Na pugna das cercanias de Tróia
até o fogo era sólido (feria antes de queimar)
toda a carne era pétrea, férrea:
o sangue coagulado, puro cerne.
“Adora os deuses, ame sua mulher, defenda
sua pátria” – era esse o ditado em todos os cadernos.
A matança indiscriminada na multidão
o sabre a furar a torto e a direito
na dança ritual dos cadáveres na praia como
banhistas amontoados nas praias de hoje....
Heitor de um lado
Aquiles do outro
Apolo no meio
a carnificina em torno!
Era um campo de colheita de defuntos:
melancias no alto dos pés de cana e de milho,
assim eles eram, assim eles estavam
os produtores de órfãos e de viúvas...
E Ulisses: um canalha em Tróia, um bom-moço
no regresso à Ítaca?
E Príamo? nenhum brilho em seu brio?
ele e Hécuba, depois da queda, intramuros:
o homem no mundo ficou só e mal acompanhado.
E o amor à vida, onde estava?
cada guerreiro não passava de saco de merda e catarro?
nenhum espírito neles, nenhuma alma?
e a sensibilidade de cada um, onde estaria
no calor da refrega?
Cada murro era um coice
Cada grito era um urro:
no frigir dos tímpanos as labaredas
escreviam no ar a palavra MORTE...:
tantos deuses, meu Deus, para quê?
Zeus, como o gato no quintal, espantava os passarinhos
no simples vôo da águia os torvos presságios da vinda
dos titânicos inimigos;
ao ancião exímio nas artes dolosas o leão e a pantera
e as águas em pé e deitadas
obedecem cegamente;
às vezes era preciso fazer as vezes de um morcego
e atracar-se a uma figueira para salvar-se
dos ventos funestos da funesta Caribde;
as sereias e outras peripécias
(se resistes às tentações como Ulisses resistiu
- teria dito Gide ou Wilde – não quer dizer
que és forte como Ulisses, mas quer dizer sim
que suas tentações são mais débeis);
até que chega o momento do esperado repasto, quando
as mãos estendem para alcançar as viandas...
Às vezes é preciso humanizar o mimetismo, camuflar
as aparências, enganar os algozes....
Mas que é duro é: reconhecer que entre as criaturas
que andam e rastejam
não há nenhuma mais mísera que o homem...
É por isso que os deuses
quando querem destruir um ser humano,
primeiro o enlouquece,
tal como diante de Telêmaco os que
“em convulsões estorciam-se, rindo com rostos
estranhos”?...(1).
Pois foi lá no Monte Parnaso que um porco do mato
mordeu a perna de Ulisses, para o gáudio e o estupor
das musas amoitadas...
Pois foi no vexame da volta ao lar que seu coração,
como um cão danado, ladrava em saltos
dentro do peito constrangido...
Pois na armadura de Aquiles constava, emblemados
“o firmamento, o sol claro, a lua redonda” (2)...
Pois lá de vez em quando um herói seria recompensado,
assim que da família de Príamo o caçula Eneias
sobrevive e se faz ao mar e lá vai inspirar Virgilio
na igualmente bela Eneida,
já com os ares da língua romana.

(1) e (2)- os livros ODISSEIA e ILÍADA, tradução de Carlos Alberto Nunes, EDIOURO, São Paulo, SP.