terça-feira, junho 20, 2006

MANUELZÃO E MIGUILIM, DE GUIMARÃES ROSA (*)

A linguagem inconvencional, não a exótica ou folclórica com suas escórias de redundâncias e não-concordâncias, a linguagem não-linear, não-acadêmica, a linguagem dos povos excluídos, do sertão, é usada por eles quando querem entender as coisas e contá-las com essa linguagem que não é apenas uma fonte de expressão, mas sobretudo uma fonte de conhecimentos. Quando querem entender um bicho, uma visão ou um som de coisas, eles pensam e falam com as palavras que formam as coisas, que organizam e exprimem as coisas de dentro para fora e, assim, cada punhado de palavras parece ter sido criado na hora da conversa e por isso não pode ser empregada noutro contexto. É a linguagem inusual que exorbita do regionalismo e da época e dificilmente será considerada arcaica, pois é a linguagem da alma dos seres humanos na comunhão das almas dos outros seres da natureza. Tem os contornos livrescos, mas a expansividade é popular, a oralidade dá as mãos ao erudito na comunhão peripatética dos seres humanos indistintos – e assim o caipira de repente é um letrado. E assim ele espelha a amizade entre o menino e o gato, no paiol de milho: “O gato Sossõe, certa hora, entrava. Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha, censeando os ratos, entrava com o jeito de que já estivesse se despedindo, sem bulir com o ar. Mas, daí, rodeando como quem não quer, o gato Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto, se prazia de ser, com aquela ronqueirinha que era a alegria dele, e olhava, olhava, engrossava o ronco, os olhos de um verde tão menos vazio – era uma luz dentro de outra, dentro doutra, dentro doutra, até não ter fim”.(p.39). Por aí se vê. São palavras autônomas no texto, inseparáveis do que dizem. Com elas você faria um memorando, uma notícia de jornal? Aí está a importância literária do autor que não deixa o samba morrer, que mantém o humanismo bem aceso nos umbrais do planeta. Assim Miguilim via o velho Deográcias, curador homeopático e candidato a mestre roceiro: “Todo tão feio, seo Deográcias, aquele tempo se tinha medo que ele envelhecesse em doido”. Não é assim que as crianças de um modo geral ajuízam a figura do velho antipático? Páginas adiante ele depara com a Mãitina, velha do tempo da escravidão, que vivia na casa, estranhamente, com seus modos esquivos, suas falas em idiomas afros, antigos, cabalísticos: “Tanto mesmo Mãitina tinha gostado dele, e vieram, até na porta-da-cozinha, ela segurou na mãozinha dele, aí ela gritou, exclamando os da casa, e garrou a esbravecer, danisca, xingando todos, um cada um, e apontava para ele, Miguilim, dizendo que ele só é que era bonzinho, mas que todos, que ela mais xingava, todos não prestavam. Pensaram que ela tivesse doidado furiosa”. (p.49). Miguilim ´a pureza da infância, a meditação pueril e poética dos mistérios e das realidades, a pequena (infantil) observação das coisas grandes (adultas), como o amor, o desamor, a bondade, a violência, a morte, a vida em estado puro, em toda a sua manifestação: animal, vegetal, mineral e sobrenatural. “Ele Miguilim era quem ia casar com Drelina – mas irmão não podia casar com irmã?” - “Drelina, quando eu crescer você casa comigo? - Caso, Miguilim, demais.” A outra irmã achava que ele não aprendia a dançar porque “nasceu em dia de sexta-feira com os pés no sábado: quando está alegre por dentro é que está triste por fora”. A mutação gráfica e sonora dos vocábulos faz parte do corpo de baile dos campos gerais: curió passa a ser curiol, exaparecendo é desaparecendo. “Mãe olhou Miguilim, prazida. Pai escutou, e o que disse não disse nada”. Os neologismos contextualizados nas frases parecem seculares: “devoava uma alegria”, “abelhas e avespas inçoavam sem assento”, “tinha sofrido um excesso”, “pai padece de escandescência”, o fogo drala bonito”, “bobagens que o coração não consabe”, “as histórias tinham amarugem e docice”, “Dião de dia!”, “tremia as mãos farinhosamente”. No discurso esplendem igualmente os neologismos remetidos de outras parolagens, como na página 214: “Os grandes cochos,entortados, ásperos, guardando as curvas dos troncos das árvores que foram. Ao enquanto,livres, os bois bovejam, os porcos crogem, sotretam os cavalos, as galinhas fuxicam, os cachorros redormem, e as dúzias de angolas se apavoinham selváticas, com seus contrafactos”. Assim rendido aos encantos da verdade e da beleza sertanejas, Guimarães Rosa, versado nos altos saberes das filosofias de todas as épocas, apura os ouvidos na atenção e aprende com os boiadeiros e roceiros o que às vezes escapou à Platão e à Spinosa, como os ditirambos das páginas 74 e 75: “Rosa, quando é que a gente sabe que uma coisa que vai fazer é malfeito? – É quando o diabo está por perto. Quando o diabo está perto, a gente sente cheiro de outras flores...( ). – Mãe, o que a gente faz, se é mal, se é bem, ver quando é que a gente sabe? – Ah, meu filhinho, tudo que a gente acha muito bom mesmo de fazer, se gosta demais, então já pode saber que é malfeito... ( ). – Vaqueiro Jé: malfeito como é que a gente se sabe? – Menino não carece de saber, Miguilim. Menino, o todo quanto faz, tem de ser mesmo é mal feito...( ). O vaqueiro Saluz vinha cantando bonito...( ). A ele Miguilim perguntava. Sei se sei, Miguilim? Nisso nunca imaginei. Acho quando os olhos da gente não tem dispor para encarar os outros, quando se tem medo das sabedorias..., Então, é mal feito. Mas o Dito, de ouvir, já se invocava. – Escuta, Miguilim, esbarra de estar perguntando, vão pensar que você furtou qualquer trem do Pai. – Bestagem. O cão que eu furtei algum! – Olha: pois agora eu sei, Miguilim. Tudo quanto há, antes de se fazer, às vezes é malfeito; mas depois que está feito e a gente fez, aí tudo é bem feito.... Mas o Dito possuía a sabedoria de quem vai morrer muito antes do tempo. Às vezes caçoava, às vezes falava sério, como quando interpreta o sentimento de culpa e o sofrimento das injustiças: “Os outros têm uma espécie de cachorro farejador... Se a gente por dentro da gente está mole, está sujo ou está ruim, ou errado.... As pessoas, mesmas, não sabem. Mas, então, elas ficam assim com uma precisão de judiar com a gente.... A promessa a gente devia de cumprir antes de ser atendido e não depois, o Dito teria dito, depois. Num mundo assim aprazível, tão francamente oferecido ao comportamento popular, a sabedoria dos refrões não podia ausentar: “eh mundão! Quem me mata é Deus, quem me come é o chão!”; “Alegria do pobre é um dia só: uma libra de carne e um mocotó”; “Casar sério lá é triste/ Namorar só é que é gostoso”. E as pessoas que transpiravam as sabenças dos rincões, na melhor magreza das virtudes, encolhidas na modéstia que elas confundem com as ignorâncias. Como está na página 192: “uns, pobres de ser, somenos como o velho Camilo, esses nem tinham o poder de nada, solidão nenhuma. Viviam, porque o ar é de graça, pois”. Mas o Manuelzão, altivo na modéstia da festa que coroava sua vida, pilhado quando negociava assuntos de produção de creme de leite, justifica: “Compadre, veja. Mais antes trabalhar domingo do que furtar segunda-feira. Mesmo digo. Aqui a gente olha a garapa ainda na cana”. – E a vida, seu Chico?, alguém pergunta e ele responde: - “É isto que se sabe: é consolo, é desgosto, é desgosto, é consolo – é da casca, é do miolo”. Na roça eles sabem o nome de tudo. E sabem porque aprenderam ou de nascença? Se não sabem, eles inventam na hora, e assim todos ficam sabendo. Inventam como? Arranjam um nome para a coisa, parecido com a coisa, um neologismo, uma composição que corresponda à visão da coisa, baseada, é claro, no entendimento prévio que se tem das coisas em geral, no comum acordo delas com os respectivos nomes. De sorte que a linguagem se valoriza, a gramática flexibiliza, e a certeza de que o estilo é o homem se confirma. O modo de falar de cada pessoa (o sotaque, o palavreado, incluindo os neologismos) define cada pessoa. Ninguém encontra a linguagem pronta e acabada como a escolarizada dos meios urbanos: lá no sertão cada um tem que se virar para dar seus recados, contar seus casos, comunicar-se com os outros. E sua palavra (a voz e o que ela diz) é sua graça. “Chuva vesprando, cachorro sossega muito”, um dos personagens diz. No rala-rala, no frigir dos vocábulos, agora em nova gramática e nova ortografia, a fonética e a morfologia realinhadas, surgem as imagens dispersas e também as claras: “ele bebia um golinho de velhice”; “os cachorros corriam muito para longe, querendo pegar as bobagens do vento”. Mas, a par de toda bizarria lingüística, Guimarães Rosa sabia armar o enredo e estruturar uma ação dramática: a doença imaginária de Miguilim, a levação do almoço ao Pai na roça servindo de carregação para o drama passional do tio enamorado da mãe – e depois a emboscada dos macacos, que lhe tomaram o almoço do pai. Isso ele fazia, também, como o melhor dos novelistas! Os personagens não sossegam, as ondas fervem nos redemoinhos. O verbalismo deles tem que se ajustar ao dinamismo da vida. As palavras não podem ser diferentes dos atos: “O Dito gostava de ter notícia de todas as vacas, de todos os camaradas que estavam trabalhando nas outras roças, enxadeiros que meavam. Requeria se algum bicho tinha vindo estragar as plantações, de que altura era que o milho estava crescendo”. Um outro deles apreciava a festa do Manuelzão (p.237): “Amiúde visava de lá o senhor do Vilamão, transitório, corujante, os olhos meio mortais, o rosto roseando suave no desde-luz, celeado geoso”. O fraseado cuidadoso, pinturesco e buliçoso não tolhia a verve descritiva nem a vivacidade do fluxo narrativo. No momento crucial da história, a morte do querido irmão Dito, ele repetia as frases que a mãe dissera quando o estava pondo dentro da bacia para lavar. Agora era ele quem precisava guardá-las, decoradas, ressofridas. Só Rosa disse que o Dito falava com cada pessoa como se ela fosse uma, diferente, mas que gostava de todas como se todas fossem iguais. E disse que o Dito parecia “uma pessoinha velha, muito velha em nova”. Já o outro irmão, o Liovaldo, era malino e urbanizado: veio à roça com a malícia cortante do pouco caso. Perto dele Miguilim nem queria conversar com os outros. “Porque o Liovaldo, só de estar em presença, parecia que estragava o costume da gente com as outras pessoas”. e assim como o autor não pode deixar de citar as trovinhas populares que os personagens citam, o leitor também não pode deixar de citar. Elas estão na ponta da língua e do pensamento: “Meu cavalo tem topete/topete tem meu cavalo/no ano da seca dura/mandioca torce no ralo. Quem quiser saber meu nome/carece perguntar não:eu me chamo lenha seca/carvão de barbatimão. Ó ninho de passarim/ovinho de passarinhar/se eu não gostar de mim/quem é mais que vai gostar? O bicho que tem no campo/o melhor é a sariema/que parece com as meninas/rouxeando a cor morena. Suspiro rompe parede/rompe peito acautelado/também rompe coração/trancado e acadeado. O bicho que tem no mato/o melhor é o passo-preto/todo vestido de luto/assim mesmo satisfeito. A literatura é um diálogo do autor com o leitor, que toma muitas conotações, dependendo da formação de vida de um e de outro, mais do autor, que, no caso, é o elemento ativo. Ele pode escrever pouco e acertado, usando a síntese da poesia, ou alongar-se páginas e páginas, dias e dias de leitura interminável. Nesse caso, ele tem que encher lingüiça com grãos de ouro, para não enfadar o leitor nas entrelinhas, nos intervalos dos lances mais enfáticos e sensacionais, como os de uma partida de futebol, na qual um gol de letra nasce às vezes de uma bola prosaicamente atirada da lateral do campo. Guimarães Rosa não pisca os olhos nem afrouxa as mãos nesses intervalos. Seu leitor não sente a diferença dos ritmos nos vãos da escada, ninguém percebe quando ele passa da armação do laço para a laçada do boi na invernada. Seguimos pelas ondulações cromáticas do mosaico e só depois é que nos lembramos dos ponto-chave, das nucleações, das pontas e dos pontos do fio narrativo. Às vezes defrontamos a epifania da poética, as lágrimas da paixão, os estribilhos do riso – porque de repente estamos bem dentro é da natureza e não do livro, e ela, a natureza, tem seus matizes e seus emblemas – e assim o próprio realismo mágico flui despretensiosamente, sem ser chamado e sem chamar atenção, como a coisa mais natural do mundo – o riachinho que de repente cessa de correr: “Foi no meio de uma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estado do silenciosinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram, até as crianças. Até os cachorros latiram. Aí , todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia.” Assim o geral, feito dos particulares, vai ressaltando os particulares e assim também naturalmente, sem premeditar, surgem os personagens do realismo mágico rosiano, como o tal de João Urugem, que, acusado de um furto que não cometeu, foi morar num pé de serra, longe das pessoas. Quando comparece à festa da inauguração da Capelinha de Samarra, é estranhado,pois “não sabia mais falar corretamente com os outros, parece que chorava pensando que estava rindo. Pegara por lá essa doença de malcheirar, quem sabe também o que ele não comia? ( ) Os cachorros estranhavam o indivíduo dele, iam para lá, latir”. O poder criativo desse arrumador de palavras pinta o cenário, move os personagens, conta o transcorrer dos momentos da vida e, assim, com o calor da fé e a arte do engenho, logo o que é pequeno fica sendo grande, o que é feio fica bonito, a festa vira um festão, a capelinha ganha a nobreza de uma catedral entre as veredas e os morros das gerais, repletas de buritis e criações de gado. As pessoas tocam, cantam e dançam, são elas mesmas na naturalidade sem empréstimos, e assim a brincadeira vira um frenesi de comunhões – assim como enamorados de si mesmos, em homenagem à natureza, que é talvez a parte mais instigante do corpo de baile: “Eu subi pro céu arriba/numa linha de pescar/fui perguntar Nossa Senhora/se é pecado namorar. Travessei São Francisco/montado numa cabaça/arriscando minha vida/por um gole de cachaça”. Guimarães Rosa reconta a própria História de Minas, mostrando que ela não se embasa apenas na mineração, mas se apóia no depois (como ele diria), na lida campesina da agropecuária de subsistência dos vastos sertões cheios de vida e de notícias e de sonhos: uma outra espécie de ouro , o alimento do corpo e da alma é procurada nas serras e vales, nas grotas, capoeiras e descampados e, aqui e ali e acolá, reluz em forma de paisagem viva da biodiversidade planetária. Para contar e recontar a outra saga da mineiridade, Guimarães Rosa colhe os nomes, as frases, os casos, no próprio local, com as mesmas pessoas envolvidas no romanceiro dessas roceiras arrelias. E vê (e vemos com ele) que tudo que há na história dos outros mundos está bem ali na história dos lugares: os sentimentos, os conhecimentos, os anseios e a contextualização. O lírico e o épico equilibram-se no alto da literatura, onde tudo aflui e ocorre: a onomatopéia da natureza, as nênias da infância, os desejos do amor, As incursões nas grimpas do fantástico, o ramerrão cotidiano entre as alternativas das mais incríveis aventuras..., e até os ecos longíncuos das vozes do além mar, as ressonâncias turcas, persas, gregas, judaicas, os romances medievais da cavalaria andante, tão bem transposta pelo Seo Camilo, o contador de histórias, numa transcriação, diria melhor, numa transfusão do Romance do Boi Bonito, conforme este pequeno trecho (para encerrar nossos apontamentos) da página 246: “esse boi que hei, é um Boi Bonito: muito branco é ele, fubá da alma do milho; do corvo o mais diferente, o mais perto do polvilho. Dos chifres, ele é pinheiro, quase nada torquezado. O berro é uma lindeza, o rastro bem encalcado. Nos verdes onde ele pasta, cantam muitos passarinhos. Das aguadas onde bebe, só se bebe com carinho. Muito bom vaqueiro é morto, por ter ele frenteado. Tantos que chegaram perto, tantos desaparecidos. Ele fica em pé e fala, melhor não se ter ouvido...”. Referências bibliográficas: ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. 17.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 

(*) Trabalho apresentado no Seminário Internacional GUIMARÃES ROSA – 1998-2000, na PUC Minas, organizado pela Comissão de Haroldo de Almeida Marques, Lélia Parreira Duarte, Márcia Marques de Morais, Maria do Carmo Lana Figueiredo, Maria Nazareth Soares Fonseca e Rachel Esteves Lima. E publicado no livro VEREDAS DE ROSA, organizado por Lélia Parreira Duarte – PUC Minas, CESPUC, 2000, Belo Horizonte, MG.