quinta-feira, setembro 28, 2006

A DÚVIDA DE HAMLET

Geralmente o escritor detalhista é monótono, dispersivo, cansa o leitor, que às vezes até salta páginas inteiras do livro, quando não o encosta de novo na estante. Mas o bom escritor faz de cada detalhe de sua narrativa ou descrição o ponto alto do texto, o primor de sua arte. Bons escritores geralmente fazem assim, alongam o palavreado sem dissipar o fundamento temático, ao contrário, envolvendo-o em auréolas, urdindo um certo magnetismo cromático de tal forma atraente (para não dizer encantador), que o leitor não perde a ponta da meada, assimilando de bom grado as finas tranças da tessitura. Lembro-me, para exemplificar: Cervantes, Machado, Kafka, Joyce, Guimarães Rosa, Lispector, Proust, Thomas Mann,Virginia Wolff, Duras, Yourcenar, Flaubert (e, felizmente, tantos outros!), ao tomar conhecimento de John Updike, lendo ininterruptamente todas as páginas do romance “Gertrudes e Cláudio”(trad. de Paulo Henriques Britto, Cia. das Letras, SP, 2001), onde ele conta a história da mãe de Hamlet – da adolescência até quando começa a tragédia de Shakespeare, ou seja, até quando o príncipe regressa à Dinamarca após a morte do pai e das renúpcias da mãe com o cunhado, tio de Hamlet. Um romance como preâmbulo para a encenação da peça mais famosa do genial teatrólogo. A narrativa de Updike é bem acionada, repleta de lances bem encadeados no enredo – e se assim sobressái é mais pela valorização dada aos detalhes descritivos, que em suas mãos engrandece a ação pela deliberadamente enfatizada situação. Quando uma cena é aparentemente fastidiosa (conversações sem relevos pontuais, explicações técnicas sobre a natureza dos falcões), é nela mesma que o autor capricha nos adendos e afins, nos componentes anteriores e posteriores, acendendo novas cores nas lidas cotidianas dos seres e das coisas, através principalmente de um poético e oportuno tratamento linguístico. Aí o leitor vai pinçando os riscos do bordado da aquarela e do mural: a lua que parecia uma pedra, a noção da cópula como uma solução para o mistério do mundo, “a vela flexível portando a chama pálida” do corpo de Gertrudes: o porte gracioso era uma janela luminosa a abrir-se para um mundo mais puro. É assim mesmo que o autor se esmera em insinuar o indizível. O lodo do ressentimento que se acumula no fundo. O que arde, mesmo longe do fogo. O lábio feminino virado para dentro e para fora. E nos entrementes, a aparição de Ofélia, uma pessoa que seria capaz de curar não só a frieza de Hamlet como a de todo o reino gélido da Dinamarca, onde os carneiros parecem pedras e vice-versa. A concupiscência corporal: as partes mais elevadas são meras serviçais das inferiores, onde se localiza a fruta recôndita da paixão. E depois das imagens, o conceito lapidar: como os homens poderiam ser a medida de todas as coisas se são os únicos animais que cometem erros? Terminado o romance, começa a peça teatral no terraço diante do castelo de Elsenor, onde os sentinelas comentam a aparição de um terrível espectro, ponto de partida do que aconteceu e do que vai acontecer no palco, pelas mãos inigualáveis de Shakespeare. Desde as primeiras cenas as palavras veementes são tão vivas que parecem representar não os fatos em si, mas elas mesmas incorporando os fatos. Nas bocas dos personagens, elas como que se transformam em seres e ações, fundindo a descrição e a narração na economia do tempo e do espaço, revelando o muito no pouco pela lídima expressão da validez mais cabal. Assim é que é prontamente instaurado o estilo shakespereano, ao mesmo tempo expansivo e continuado, taxativo e reticente, prenunciando como que em suspense o que está prestes a ser desencadeado. “...conserva-te na retaguarda de tua afeição, fora do alcance e do perigo do desejo. A mais recata donzela torna-se pródiga demais se desvenda à lua seus encantos” – recomendações de Laertes à irmã Ofélia sobre o relacionamento dela com Hamlet. “Há algo de podre no reino da Dinamarca “, o Oficial da Guarda diz na cena IV do Primeiro Ato, depois de Hamlet seguir na obscuridade o Espectro do pai. Observamos aí que o jogo e o jorro das palavras não retardam nem entopem o curso do fio romanesco, pois como já constatamos, em Shakespeare, a palavra às vezes toma os ares da própria ação. Logo damos fé que Hamlet é em si mesmo o próprio fluir das palavras doridas e cautelosas, tonitruantes e rompedoras, sendo elas em corpo e alma como que o corpo e a alma dele, ele que é não apenas o príncipe da dúvida nos monólogos, mas também o príncipe resoluto dos diálogos. Na famosa altercação consigo mesmo da primeira cena do terceiro ato, ele, incisivo, extravasa e conclama no monólogo antológico (que cito de memória de uma tradução, lida algures): “Ser ou não ser, o que é mais nobre?: sofrer passivamente as setas e balísticas com que a fortuna enfurecida nos alveja ou insurgir-nos contra o mar de provações e em lutas pôr-lhes fim?”. Assim ele tergiversa, sonâmbulo pelas sacadas do castelo, a reprimir e exprimir uma dor sangrenta, projetando-a pensativamente contra o alvo que é a causa dela. Atendido no urgente propósito, ele mascara-se na debilidade para compor e reforçar a decisão de fortalecer-se na redenção da afronta sofrida por ele e por toda a nação dinamarquesa, então atolando-se na podridão da totalitária monarquia. Não lhe ocorreu outras alternativas: fez-se de louco e cumpriu o que sua propensão íntima exigia: ensangüentou o palácio, para lavá-lo da imperiosa sujeira da vida que nele imperava, na vida que era uma espécie de desonrosa morte. Como uma limpeza do ar até então nublado para dar lugar aos raios fúlgidos do sol dos novos dias. E assim a dúvida de Hamlet passou a ser a nossa dúvida. A dúvida que ele esclareceu e superou. E nós, como ficamos?