domingo, abril 01, 2007

A POESIA HELENA ORTIZ

Nela a poesia não oferece nem acolhe o poema de circunstância: é ato contínuo do germinar das gramíneas ao desabrochar das orquídeas no chão de pedras e detritos, no ar rarefeito e refeito dos dias inevitáveis do calendário inconsútil. As diferenças e as semelhanças são, pois, indistinguíveis, participam do mesmo rol das realidades que são simples num momento e num lugar, e complexas depois, em outro contexto? Ela é a própria poesia que não se deixa levar pelas aparências dos lugares comuns e dos versos feitos. Ela tem outros olhos, outras pernas nas idas e vindas dos mesmos caminhos nossos de cada dia. Incorpora a própria poesia, que em si mesma é mesmo algo hipotético como o que reza a irônica basófia da linguagem popular: não é favor nem contra, muito pelo contrário. A verdade eterna existe em si mesma, não depende de quem a mencione na contingência dos sentidos constantemente susceptíveis. Eis com que naturalidade surge na página 77 do livro EM PAR (Editora da Palavra, RJ, 2001) o POEMA QUE TECE “quem passa pela minha casa não sabe que lá estou tecendo a vida com cada fio da lembrança de teus cabelos quem vê as flores novas dos maracujás não sabe que onde estou tu estás”. Não é a própria poesia debulhando seus versos com as mãos e as espigas mais apropriadas? Os labores da poesia na poeta não ficam como que subentendidos? No “seu falar” que “às vezes” é “um quase não falar”, a tensão explode não no que diz, mas “no que deixou de dizer” e que “é vivida às vezes como uma bênção”: é assim que Márcia Cavendish Wanderley, em algumas linhas das orelhas do (outro) livro SOL SOBRE O DILÚVIO (editora da Palavra, RJ, 2005), fala da poética heleniana. Repare bem no poema “escombros” e vê se não é bem assim tão meigo e torneado como a Márcia disse: “nasceste numa noite de tempestade juntamos o que tínhamos não era pouco no outro dia já fazia sol morreste numa noite de tempestade no outro dia já fazia sol mas era frio e não recolhemos os destroços nem secamos a água da chuva (era tudo o que tínhamos). Noutro poema (pág. 20), ela diz que “posso mudar essa lembrança – é minha”: confirmando sua pacífica autonomia para dispor dos dados de sua vida e das palavras de seus poemas. Ela é ela e mais ninguém. Pode até sofrer junto com quem ama a noturna angústia de toda a humanidade – mas sabe que no dia seguinte o sol virá para enxugar as névoas. Mesmo no afagante exercício do amor, ela toca com as palavras nos poemas o continuado tema da serenidade diante da data fúnebre, das palavras feias do dia-a-dia, dos escombros reaproveitáveis, dos infiéis abandonos, dos desejos duvidosos e das dúvidas desejáveis, dos amores acompanhados dos respectivos instrumentos musicais (de repente ela se torna um lençol florido de sombras úmidas, a concatenar os dados da intriga, da despedida, da condição humana “rígida e fria”, como no poema da página 47: “eu te matava aos poucos”, sabendo de antemão que as “flores novas plasmam a cena/ recendem/ a cada cheiro de flor”). Fecho o livro para reler depois, sentindo ainda pelos ares da escritura uma oferenda de novos versos, como se a autora continuasse (e deve continuar) a viver mais uma das primaveras em que o livro foi publicado no Rio de Janeiro, sentindo em suas palavras como “é tênue o farfalhar” das coisas, sabendo que “viver é um brinquedo diário de morrer” – pois o que se depreende da leitura é que morrer é sonhar, e que a alma não é apenas visível, mas também uma aproximada amiga nossa. Uma leitura reconfortante, uma lufada de ar aceitável nos dias que correm, tempestuosos.