sábado, julho 28, 2007

ALGUNS ASPECTOS DE CARMO DA MATA

Quando alguns dos patronos da Semana de Arte Moderna de 1922 (primeiro rebento da modernidade literária brasileira) passaram de trem no vale da encosta da erguida e ensolarada Carmo da Mata, em 1925 (1), Mário de Andrade começou a mentalizar o poema antológico “Noturno de Belo Horizonte”, registrando a aguda impressão que lhe deu “o campo de futebol em Carmo da Mata”. Certamente ele não viu apenas o retângulo gramado na várzea do Rio Boa Vista, mas também os jogadores de gorros e chuteiras, joelheiras e caneleiras, a bola de capota voando às vezes mansa e rasteira, às vezes alta e chispada, como se fosse um pombo sem asas, como costumam dizer os folclóricos locutores esportivos. É claro que no relance visualizou, além dos jogadores, o árbitro, os torcedores entusiasmados, toda a quentura da porfia, a arte de driblar e chutar, defender e atacar. A bela arte esportiva do povo carmense e brasileiro. Eu mesmo muitas vezes passei e continuo a passar, antes de trem, agora de automóvel, na mesma estrada que margeia a habitada e expressiva encosta da antiga Mata do Barreto, berço esplêndido do Padre Francisco de Paula Barreto, um dos homens mais importantes da região no período da transição dos séculos 18 e 19 – e de suas oito irmãs (bendita prole de Antônio e Joanna!), que naturalmente encantavam os rapazes daquela época, progenitores de uma população sempre bonita e ajuizada, que ainda hoje brinda a cidade e seus extensos arredores da bela exemplaridade do que há de melhor em qualidade humanística. Elas se chamavam: Joaquina, Antônia, Anna, Maria, Felizarda, Maria Bernardina, Leonor Joanna e Mariana- que depois se conjugaram com os filhos das outras famílias pioneiras: os Martins Fernandes, os Afonso Rodrigues, os Friaça, os Ribeiro da Silva, os Castro, os Diniz, os Amaral, os Carvalho, os Notini, os Vitoi, etc: os sorrisos e olhares, suspiros e palavras de amor e ternura que ainda hoje pairam na verdura do solo, na azulura do céu, na brancura das nuvens, no sonho das renovadas pessoas de todos esses tempos. Berço esplêndido também do renomado Dom Alexandre Gonçalves Amaral, Arcebispo de Uberaba, o mais jovem (quando sagrado) e o mais idoso (quando aposentou) na História da Igreja Católica, o único que enfrentou, naquela época, o absolutismo da ditadura militar com desenvolta severidade, e que hoje é o nome da principal avenida da cidade, assim como Padre Francisco é nome da principal avenida da cidade de Oliveira. E ainda hoje quem por ali passa nutre-se das mesmas impressões telúricas. Vislumbra as imagens das coisas e dos seres, dos amigos e parentes e da magnífica imagem de Nossa Senhora do Carmo abençoando as lembranças não só de Dom Alexandre e dos padres Francisco Barreto e Galdino Diniz, mas de todo o povo e também das mulheres formosas como os próprios nomes: Diamante, Felicidade, Altiva, Francelina, Celicota, Umbelina, Josefina, Eponina, Zilá, Patrícia, Duzolina, Sinhá, Zizinha, retratadas na lembrança como se fossem antológicas exemplares de poesia viva no belo livro de Lineu de Carvalho, “Família Notini”. A mirada é longa no vigor da memória, mesmo passando depressa, transportado pela rodovia ou pelo trem de ferro da baixada. As casas subindo e descendo os morros e ruas ajardinadas no rebanho da clorofila, no ressentimento perfumado das doces essências das rosas de Dona Vera, lá do Campo de Sementes, de onde uma vez levei mudas de laranjas e mexericas que ainda hoje florescem e frutificam no quintal de Marilândia. A igreja no alto, o cemitério à direita de quem sobe, as casas felizes, de tantos parentes e amigos. Do caprichoso calçamento o chão parece respirar, aliviado. À guisa de arremate, vale sugerir a citação das esotéricas, surrealistas, maravilhosas imagens da prosa poética de Murilo Rubião, muitas instintivamente captadas na paisagem carmense, onde ele viveu algum tempo. Lembro-me dele, numa longa conversação, a dizer-me sobre a importância do romance “Dom Quixote”, de Cervantes “Quem não leu, tem que ler”, ele assegurava. E eu, que ainda não tinha lido, passei a ler e reler as mil e tantas páginas do fabuloso livro. E sinto-me ainda como que no início do caminho do conhecimento, como se ainda morasse infantilmente em Marilândia, um lugar no meio do caminho de Carmo da Mata, terra de tantos sonhadores e realizadores de alta estirpe humana. (1) – Ver o livro “Aventura Brasileira de Blaise Cendrars”, de Alexandre Eulálio e Carlos Augusto Calil.