sexta-feira, julho 20, 2007

ESTA BIBLIOTECA É UM COLÉGIO (*)

Para Emerson a biblioteca é uma espécie de câmara mágica, onde sob o efeito do encantamento estão os melhores espíritos da humanidade, que esperam o nosso olhar e a nossa palavra para sair da mudez e do quietismo. Quando abrimos um livro, ele desperta e nos diz o que disseram as melhores pessoas que a humanidade produziu. Jorge Luís Borges, mesmo depois de ficar cego, continuou a convivência com os livros que enchiam sua casa de todas outras casas do mundo. Amando-os assim, de olhos fechados, era como se continuasse a lê-los todo o tempo, desde o dia em que foram escritos. Assim ele era (e é) o grande escritor porque era um maravilhado leitor. Ah, os livros, quê súbita lembrança de amor e carinho! São como os amigos que trazem a felicidade, a inquietação da felicidade a quem abre suas páginas de lágrimas e sorrisos. E é assim, penso: que o leitor é que enriquece o livro, como se continuasse a escrevê-lo, lendo-o e vivendo-o. O jardim das veredas que se bifurcam em ruas, praças, avenidas, caminhos, trilhos, aléias que abrigam os bons e os maus momentos das pessoas, os cursos de água doce, os vagalumes, os poentes, as dinastias, os paraísos perdidos, os novos futuros, os mantimentos da alma, o invisível labirinto dos símbolos. O crepitar de antigas friezas. A biblioteca Ataliba Lago é um colégio de bom tamanho, no qual o corpo docente é mais numeroso do que o corpo discente. Mais de mil professores (os livros) para cada aluno (o leitor). Uma mão na roda, pois. Quilômetros de páginas do conhecimento e da imaginação ao alcance das mãos, dos olhos, dos corações e da mentalidade dialética. A biblioteca é um jardim em que (parafraseando Borges) os labirintos se bifurcam em ruas e caminhos, cada uma das direções levando e trazendo os ares das graças e dos entendimentos das artes e ofícios da literatura, da religião, da história, da profecia, da ética, da estética, da etnografia, da geografia, da matemática, da biologia, do teatro, do cinema, da música, do jornalismo, da sociologia, da etnologia, da antropologia, da biografia, de tudo e de toda a vida que faz do mundo uma coisa viva, que faz até da pedra um ser vivo. Na teoria e na prática. A Biblioteca da Abadia, que Humberto Ecco edificou no romance “O Nome da Rosa”, mergulha sua origem na profundeza dos tempos, e de lá os monges copiavam os manuscritos entre as folhas dos saltérios com ricas iluminuras e aparas e esboços de miniaturas em pergaminhos fartamente ilustrados com as figuras dos centauros e dos dragões, das sereias voadoras e dos animais com mãos humanas nas costas, e as quimeras bicéfalas e asas de borboletas. A biblioteca de Divinópolis é também assim em nossos dias, na plenitude da realidade dos doces pássaros da juventude imemorial. A da Abadia, reserva de saber, era ao mesmo tempo a Jerusalém Celeste e o Mundo Subterrâneo. A do Ataliba Lago (a nossa), também guardiã da sabedoria, não pode ser ameaçada (como desgraçadamente foi a de Alexandria) por nenhuma força terrena. Pois é só abrir um livro para ver as folhas repletas de flores e frutas, cada página vira um relicário de promessas e lembranças – o vocabulário “fúlgido de gemas encastoadas no tecido mais devotado das escrituras”. Não sou medidor de desempenhos funcionais, mas penso que se todos os órgãos da Prefeitura seguissem a funcionalidade da Ataliba Lago, ah, então estaríamos diante de um serviço público que realmente serve ao público. São mais de 70 mil livros disponíveis a quase sete mil usuários inscritos (de carteirinhas), que levaram para casa, a título de empréstimo, quase cem mil livros nos últimos dezoito meses. Sob a eficiente coordenação de Márcia Aparecida Cecílio, 22 funcionários e 5 estagiárias atendem a contento os leitores e pesquisadores e estudiosos nas salas de estudos, nos setores de leitura e pesquisa, nas áreas de videoteca, da hemeroteca, das exposições etnográficas, da sala de multimeios (local da hora do conto, da noite de poesia, das palestras e lançamentos de livros), e no centro de memória, onde estão as obras raras e preciosas. Estive lá na semana passada, pesquisando os deserdados da Inconfidência Mineira, que ainda sobrevivem em nossa região: os Ferreira Marques, os Gurgel do Amaral, os Abreu Vieira, os Oliveira Lopes, os Ferreira de Souza, os Teixeira de Carvalho, os Rodrigues Costa, os Teixeira Coelho, os Rabelo, os Resende Costa, os Álvares Maciel, os Costa Guimarães. Toda pesquisa é boa porque sempre apresenta um resultado objetivo ou subjetivo. No meu caso, sei que estou apenas arranhando a superfície de um território que se perde de vista nas planícies, montanhas e subsolos. Mas o resultado mais imediato foi gratificante. Em apenas dois dias consegui esquadrinhar muitas possibilidades e descobri muitas jóias, algumas afloradas, outras ainda recônditas (históricas e proféticas). E ali naquele local de encontro de tantas almas, na área específica da literatura, ah, a literatura: aceitação pacífica dos paradoxos, folguedo nupcial dos contrários, convivência sutil no afã de entrelaçar os cipós das mesmas flores enfeitiçadas, e de copiá-las no jardim das incertezas, no jogo dos contrários e não das contrariedades. Assim mesmo, é assim mesmo a vida nossa de cada dia no mundo dele mesmo, com o que ela nos proporciona todo dia. 

 (*) Texto publicado em um jornal da Prefeitura (em 2003) e aqui agora corrigido e revisado.